Mais um vinho da série: “Castas novas que eu descobri”. E
mais uma vez direi, mesmo que soe redundante: é um grande prazer descobri novas
cepas, ter novas e inesquecíveis experiências sensoriais. E essa nova
“descoberta” me trouxe algumas reflexões.
Ainda existe, o que é uma pena, alguma resistência com
relação aos vinhos brancos no Brasil. Uma espécie de triste rejeição construída
por uma edificação calcada no preconceito. Já ouvi e li muitos comentários
acerca disso tudo, entre eles temos: Ah vinho branco não tem expressão ou ainda
aquele: vinho branco é para iniciantes ou são bebidas direcionadas ao público
feminino ou coisa que o valha.
Lembro-me que na minha iniciação no mundo do vinho eu também
criei uma resistência, uma dificuldade em entender as propostas dos brancos, as
harmonizações, uma rejeição construída com base na desinformação.
Mas ao longo do tempo o vinho branco foi adentrando, devagar,
é verdade, a minha adega e as experiências sensoriais com eles foi se tornando
uma constante. E descobri que, como os tintos, os brancos também tem um leque
infindável de propostas, que vai dos leves, delicados, simples, aos mais
elaborados, complexos e encorpados.
Infelizmente, talvez esteja equivocado, poucos são os brancos
ofertados no Brasil com a proposta mais encorpada, de rótulos complexos, mas o
vinho que escolhi traz um branco com a estrutura de um tinto, de uma casta que
na década de 1960 esteve a beira da extinção, por conta da philloxera e hoje
figura a minha taça, inundando de expectativa esse momento de degustação, de
celebração do vinho. Falo da Viognier.
Ela é oriunda do norte do Côtes do Rhône, mas o rótulo de
hoje veio da minha região favorita do Uruguai: Canelones. Quando o comprei,
algum tempo atrás, eu perguntei a um especialista em vinhos, não sei quanto
tempo, aproximadamente, talvez há um ou dois anos atrás, onde a Viognier era
mais conhecida e ele me disse que era a França que hoje entendo que é por
razões óbvias. E perguntei se o Uruguai tinha tradição na produção da cepa e
ele me disse que não.
Bem o fato é que hoje a produção da casta no Cone Sul está
crescendo e não estou baseando o meu comentário com base em números, mas apenas
observando alguns rótulos da Viognier no próprio Uruguai e também na Argentina.
Sem mais delongas o vinho que degustei e gostei é deveras aromático, deveras encorpado, saboroso e cheio de frutas brancas tropicais, ele vem da região uruguaia de Canelones e se chama Pueblo del Sol um 100% Viognier da safra 2017. Um rótulo da tradicional Família Deicas, sinônimo de vitivinicultura. Mas já que estamos falando de história e tradição, falemos da Viognier e também da região de Canelones.
A hedonista Viognier
A Viognier é uma variedade de origem francesa, muito ligada
ao Rhône, mas, graças às suas características aromáticas e estruturais, além de
ser uma ótima “parceira” de outras castas brancas em blends, espalhou-se por
diversas partes do mundo, gerando vinhos excepcionais.
As primeiras menções a ela são de 1781, ligando-a região de
Condrieu e também Ampuis, no vale do Rhône, mas uma tese diz que a Viognier foi
levada da costa da Dalmácia para a França pelo imperador Probus, e que a
variedade veio de Smirnium na Croácia. No entanto, não há evidências históricas
de que a casta seja mesmo croata.
Análises de DNA mostram uma relação pai-filho entre Viognier
e a casta Mondeuse Blanche e isso a torna uma possível meio-irmão ou até mesmo
avó da Syrah, já que elas fazem parte do mesmo grupo ampelográfico, mas
especialistas ainda não descobriram a ordem exata dos fatores.
A origem do seu nome ainda é um mistério, mas teoricamente
derivaria do francês viorne, do gênero botânico “viburnum”, que remete a flores
brancas, possivelmente ligado às características aromáticas.
Há cerca de 50 anos, a Viognier estava restrita a poucos
lugares, encontrada em cerca de 10 hectares em Condrieu e no Château Grillet
somente, e hoje é um fenômeno mundial. A casta é tradicionalmente cultivada em
solos mais ácidos, mas também se adapta a regiões mais quentes, por isso tem
sido plantada em vários locais do mundo, da Califórnia, ao Uruguai, passando
por Austrália, Nova Zelândia, Chile, Alemanha etc.
A Viognier é para quem gosta de parar e sentir o cheiro das
flores. Os vinhos variam de sabor, desde mais leves como frutas amarelas, em
especial tangerina, manga e pêssegos até aromas mais cremosos de baunilha com
especiarias de noz-moscada e cravo-da-índia. Dependendo do produtor e de como o
vinho é feito, ele varia em intensidade, de leve e quente com um toque de
amargor a ousado e cremoso.
No paladar, os vinhos são geralmente secos, embora alguns
produtores façam um estilo levemente doce que embeleze os aromas de pêssego da
Viognier. Os estilos mais secos aparecem menos frutados no palato e produzem
amargura sutil, quase como se triturássemos uma pétala de rosa fresca.
No geral, os vinhos desta casta encontram seu melhor momento
depois de 2 ou 3 anos, quando alcançam um estado mais opulento e exótico.
Canelones
Localizada bem ao sul, Canelones é a principal região
produtora de uva e vinho no Uruguai e, por isso, concentra a maior parte dos
vinhedos do país. A cidade de Canelones faz parte da região metropolitana de
Montevidéu. Ela é cercada por um enorme complexo de pequenas fazendas e
vinhedos, que são responsáveis por impressionantes 84% da produção de vinho do
Uruguai.
Nos seus arredores, encontram-se ótimos bares que oferecem os
melhores e mais procurados vinhos do país, já que naquela região concentram-se
desde as mais tradicionais até as mais luxuosas, modernas e rústicas vinícolas
da América Latina. Além disso, Canelones possui uma extensão de mais de 65 km
de praia, repleta de entretenimentos e lugares para descansar, sem falar do
Camping Marindia, que é um reduto de arte, cultura e atividades familiares,
cercado por trilhas bem arborizadas e que proporciona uma linda visão de pôr do
sol.
Os primeiros moradores de Canelones se instalaram na cidade
por volta de 1726; já a partir de 1774, chegaram imigrantes espanhóis e no
final do século XIX, vieram os imigrantes italianos para cultivar uvas e
fabricar vinhos. Dali em diante, a história da cidade com o vinho começou a se
intensificar, uma vez que passo a passo ela conquistava popularidade em todo o
país.
Mas foi nos anos de 1970, que videiras de clones importados
chegaram à cidade e os vinhedos começaram a se concentrar na qualidade. E hoje
a produção de vinho da região representa 14% no mercado internacional e é
responsável por oferecer uma abundância de opções ao enoturismo uruguaio.
Essa região não poderia ter localização melhor. Por sua visão
pioneira, o Uruguai foi eleito o país do ano, em 2013, pela revista inglesa The
Economist. Entre as principais razões estão o fato de realizar reformas que não
se limitam a melhorar apenas a própria nação, mas atitudes que podem beneficiar
o mundo.
E Canelones está sendo conduzida sob essa visão. Em meio a um
processo de desenvolvimento enoturístico, a região já possui até projeto de
promoção do turismo e do vinho desenhado pelo Ministério do Turismo com a
colaboração da Comarca de l’Alt Penedès, Espanha.
Há produtores que se juntaram para ajudar nesse incentivo e
criaram a Associação “Los Caminos del Vino”, que reúne diversas vinícolas
familiares abertas para visitantes, onde podem ver as vinhas de perto,
acompanhar as diferentes etapas da vinificação e, finalmente, provar o vinho e
a comida típica do lugar.
E agora o vinho!
Na taça entrega um lindíssimo amarelo com tendências douradas
bem brilhantes com reflexos esverdeados, com uma boa profusão de lágrimas,
finas, o que incrível por se tratar de um branco.
No nariz a explosão aromática, de frutas brancas e amarelas,
dá o tom, onde se pode destacar a pera, pêssego, maçã-verde, abacaxi, melão,
além das notas florais em evidência, que traz delicadeza e elegância ao vinho.
Na boca tem corpo médio, entrega personalidade marcante, expressividade,
a começar pela sua untuosidade em boca, que estimula a salivação, sendo consequentemente
muito gastronômico. Se atribui a esse volume em boca, essa untuosidade ao
pequeno percentual do vinho passando 3 meses por barricas de carvalho Tem boa acidez,
é frutado, tendo, entre esses fatores, muito equilibrado, com um final longo,
prolongado.
Descobri que a Viognier é complexa, estruturada, é para quem
gosta de analisar o vinho, de fazer um ótimo exercício de análise, que goste de
se desdobrar nesse quesito. Um vinho de volume e corpo, de personalidade
marcante. Uma casta que até pouco tempo era coadjuvante, para dar um toque
aromático as outras castas e neste belíssimo rótulo alça um “voo solo”, e que
aterrissa na minha humilde taça para o meu deleite. Pueblo del Sol, no auge dos
seus 4 anos de safra, ainda mostra notas frutadas, mais uma austeridade,
mostrando uma boa evolução, mostrando que ainda tem uma boa “pegada”. Sem
dúvida um vinho muito especial, mostrando que os brancos podem deixar uma
indelével marca na sua enófila história. E o rótulo da Família Deicas entrega
exatamente isso, como eles dizem: “Nossos vinhos são uma homenagem ao sol”.
Palavras do produtor:
“À forma como nossos
vinhedos se pintam de dourado. Ao seu calor, que ajuda a expressar o melhor de
suas videiras. À sua luz, que guia nosso trabalho desde o amanhecer ao pôr-do-sol.
Ele é o começo de tudo; a energia que nos guia para elaborar uma linha de
vinhos de valor único”.
Tem 12,5% de teor alcoólico.
Sobre a Família Deicas:
A Bodega foi fundada no século XIX e já teve vários donos,
inclusive o próprio Estado. O primeiro deles foi Don Francisco Juanicó que
fundou o estabelecimento em 1830. Apenas em 1979, quase um século e meio
depois, a Familia Deicas comprou a propriedade e imprimiu nela uma grande
mudança. Uma delas foi a de contratar especialistas internacionais para produzir
vinhos de alta gama com variedades francesas.
De toda forma, ainda permanece no local muito do passado.
Algo que pode ser apreciado em algumas construções da vinícola, que apesar de
restauradas conseguem manter o conceito original de quem as idealizou.
Caso,
principalmente, da cave subterrânea, construída com pedras por Don Francisco
Juanicó. O local hoje abriga mais de 500 barricas de carvalho francesas e
americanas, unindo tradição, tecnologia e muita beleza.
A Família Deicas é muito conhecida pelo Familia Deicas
Preludio (1100 pesos), um dos ícones da vinícola, que, é sem sombra de dúvidas
um vinho maravilhoso! Realmente, um dos melhores do Uruguai. Ele consiste em um
corte de seis variedades (Tannat, Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc, Merlot,
Petit Verdot e Marselan). Além do Prelúdio, a Juanicó também elabora o Don
Pascual, que é a marca de vinho fino mais importante do Uruguai. Também produz
a linha Atlántico Sur. Ambas as linhas mais acessíveis que o Preludio Familia
Deicas (que é produzido em lotes reduzidos e de forma mais artesanal). Afinal,
a Juanicó possui estrutura de vinícola de ponta para produzir em larga escala.
Mais informações acesse:
http://www.pueblodelsol.com.uy/_po/?pg=inicio
Referências:
“Winepedia: https://www.wine.com.br/winepedia/enoturismo/roteiros-do-vinho-canelones/
“Dicas do Uruguai”: https://dicasdouruguai.com.br/dicas/canelones-no-uruguai/
“Enologuia”: https://enologuia.com.br/uvas/262-uva-viognier-a-uva-hedonista
“Blog do Vinho Tinto”: https://www.blogvinhotinto.com.br/enoturismo-viagens/juanico-familia-deicas-tecnologia-e-tradicao-na-arte-de-fazer-vinhos/
“Revista Adega”: https://revistaadega.uol.com.br/artigo/branca-do-rhone-curiosidades-sobre-casta-viognier_13425.html