sábado, 12 de março de 2022

Genuíno Carménère 2017

 

O universo do vinho é vasto e inexplorado. Contudo mesmo que essa afirmação possa trazer a sensação incômoda de algo meio desolador, te impulsiona a explorá-lo mais e mais, a buscar novas experiências sensoriais.

Eu nunca pensei que, quando comecei a degustar vinhos, a quase 30 anos atrás, de que eu fosse desbravar, de forma tão intensa, os vinhos brasileiros. Desbravar regiões que jamais fosse chegar, que nunca esperei encontrar vinhos que atualmente não são polos de produção da bebida como o Rio Grande do Sul, por exemplo.

Como muitos, infelizmente, que adentra o mundo do vinho sempre, de forma pré-concebida, acha que o mundo do vinho brasileiro é limitado e incipiente, os rótulos e a história dizem o contrário e é uma forma de resistência que grita aos quatro cantos que o vinho nacional é válido e tem sim história.

Sempre ouvi dizer que São Paulo sempre foi uma região proeminente na produção de vinhos e mais, com certo protagonismo para a história vitivinícola brasileira. Mas nunca parei para pensar na dimensão dessa informação, na relevância disso tudo e consequentemente nunca me atentei para a possibilidade de degustar quaisquer vinhos das regiões contempladas pela natureza nas terras paulistas.

E o meu primeiro contato com os vinhos de São Paulo se deu de uma forma totalmente ocasional e despretensiosa. Estava eu acessando as minhas redes sociais e me deparei com uma publicação um tanto quanto atípica para mim e estava relacionado aos vinhos artesanais ou a vinhos produzidos por pequenas e médias vinícolas com baixa produção. Aquilo fora como se amor à primeira vista, dado o tamanho do interesse que me tomou como um arrebatamento.

Diante do tamanho do interesse decidi procurar detalhes sobre o vinho mencionado e como qualquer coisa que colocamos na grande rede para pesquisar, uma coisa vai puxando a outra, porém dentro do contexto. Até que cheguei a um site que vende vinhos de uma região famosa do interior de São Paulo conhecida como “a terra do vinho”, chamada São Roque! O site se chama “Pemarcano Vinhos”.

Os adquiri, mas não poderia parar e decidi desbravar a região de São Roque, em São Paulo, e descobri o quanto há de rótulos disponíveis, majoritariamente de pequenos e médios produtores e isso me excitou ainda mais. E as surpresas não pararam! Recebi, carinhosamente, do amigo Luciano, do site da Pemarcano Vinhos, um Carménère brasileiro! Sim! Foi o que vocês, caros leitores enófilos, leram: Um Carménère brasileiro! Os típicos vinhos chilenos com a sua casta que é o carro chefe sendo produzida em terras brasileiras!

Claro que a produção ainda é tímida por aqui, poucos são os produtores que vinificam a Carménère no Brasil, e isso traz o tempero para a minha efusiva animação em degustar esse rótulo de São Roque, o mais rápido possível. Então não hesitei muito e degustei logo este rótulo e em um misto de alegria, privilégio e ansiedade, me peguei a desarrolhá-lo e inundar a minha taça desse Carménère brasileiro. De cara já impressionou pela intensa cor vermelha escura, intransponível que logo explodiu em aromas de frutas vermelhas maduras, e aquele toque clássico de couro, de “carpete” da Carménère. Começamos bem! Quando o levei à boca...voilá!

O vinho que degustei e gostei veio da região de São Roque, em São Paulo, e se chama Genuíno da casta Carménère e a safra é de 2017. Não vou, ainda, entrar nos pormenores do vinho, em sua análise, falando antes da história da região de São Roque que personifica a história do vinho em nosso Brasil e que merece ser enaltecida inúmeras vezes. Vamos a terra do vinho!

São Roque: A terra do vinho!

 A cidade de São Roque foi fundada no dia 16 de agosto de 1657, mas começou como uma grande fazenda do capitão paulista Pedro Vaz de Barros, que pertencia a uma família de bandeirantes e sertanistas. Vaz de Barros também participou de diversas Bandeiras. O fundador da cidade, também conhecido como Vaz Guaçú, contava com aproximadamente 1.200 índios que trabalhavam em suas terras, onde eram cultivados trigo e uva. Alguns anos após a morte de Vaz de Barros, seu irmão, Fernão Paes de Barros, se estabeleceu na mesma região, onde construiu uma casa e uma capela, que foram restauradas em 1945 pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a pedido do escritor Mário de Andrade, dono da propriedade.

Na região de São Roque, podem-se identificar referências à vitivinicultura desde a sua fundação, por volta do final do século XVII. Conforme informações encontradas e divulgadas pelos moradores da cidade, através da tradição oral, ou mesmo citado pelo Professor Joaquim Silveira dos Santos em seu artigo para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, volume XXXVII, nessa época toda a região pertencia a apenas três grandes proprietários de terras: Pedro Vaz de Barros, seu irmão Fernão Paes de Barros e o padre Guilherme Pompeu de Almeida, sendo que Pedro Vaz (tido como o fundador da cidade) se estabeleceu próximo da atual igreja Matriz, seu irmão mais ao norte, onde até hoje ainda se encontra a casa grande e capela Santo Antônio, e por fim a fazenda do padre Guilherme Pompeu se encontrava na hoje atual cidade de Araçariguama que faz divisa com Santana do Parnaíba.

Portanto realmente não se podem esperar grandes referências desse período da história, afinal o Brasil era apenas uma colônia e que existiam restrições da fabricação de qualquer tipo de produto em nosso solo, ou seja, em tese tudo deveria vir de Portugal, inclusive o vinho.

Outro fator que pode ter influenciado e não ter feito prosperar o cultivo da videira seria a prioridade da época de então, que era a descoberta de ouro, principalmente na região das Minas Gerais. Sabemos que São Paulo até então era somente um vilarejo sem grande importância econômica para a metrópole portuguesa, e se bem analisarmos a história da agricultura brasileira a uva e o vinho nunca foram tidos como principal interesse por parte de nossos colonizadores.

Após um período difícil, o povoado originado por Pedro Vaz foi elevado à categoria de Freguesia no dia 15 de agosto de 1768, recebendo o nome de São Roque do Carambeí. No dia 10 de julho de 1832, a Freguesia foi elevada à categoria de vila, mas o progresso do local só começou em 1838, quando começaram as lavouras de milho, algodão, arroz, mandioca e farinha de mandioca, cana de açúcar e derivados, legumes e verduras. Em março de 1846, seis anos após instalar-se na vila o destacamento da Guarda Nacional, Dom Pedro II e uma pequena comitiva permaneceram um dia na cidade de São Roque. Com a passagem de Dom Pedro II, Antônio Joaquim começou a se destacar no cenário político e, graças ao morador ilustre, São Roque foi elevada à categoria de cidade no dia 22 de abril de 1864.

Após esse longo período de estagnação, o primeiro registro oficial de plantação de uvas na região de São Roque se dá por volta de 1865, quando o Doutor Eusébio Stevaux inicia uma pequena plantação na sua fazenda em Pantojo. Pela mesma época, um colono italiano adquire uma pequena propriedade no bairro de Setúbal, alguns anos mais tarde um português na terra do então Sítio Samambaia forma um razoável vinhedo e inicia o processo de fabricação do vinho.

Doutor Eusébio Stevaux

Já em 1875 foi inaugurada a Estrada de Ferro Sorocabana, que ligou a cidade de São Paulo a São Roque e Sorocaba. Após alguns anos, em 1884, começou a grande chegada de imigrantes à cidade, fazendo com que as vinícolas aparecessem novamente e ganhassem força nos anos seguintes. Em 1924, a cidade já contava com 17.300 habitantes e foram produzidos 10 mil litros de vinho a cada ano, tendo doze produtores de vinhos, sendo cinco deles italianos.

O que possibilitou o retorno da cultura da uva e fabricação do vinho foi a importação de videiras oriundas dos Estados Unidos, pois estas eram mais resistentes ao clima brasileiro. Dentre as principais videiras trazidas estão inicialmente a “Izabel”, a “Seibel 2” (importada da França), curiosamente trazida por imigrantes italianos que se instalaram na região e posteriormente a “Niágara Branca”, oriunda da região do Alabama, EUA.

Portanto, a divisão do período da cultura vinícola de São Roque, desde a fundação da cidade até a época atual em quatro fases distintas:

1ª fase: 1657 – 1880: importação de videiras portuguesas, plantações domiciliares, sem qualquer cunho comercial, ou seja, somente para consumo próprio.

2ª fase: 1880 – 1900: Retomada da viticultura são-roquense, ainda que amadora, quase que familiar, continua voltada basicamente para o consumo e pequeno varejo. Já apresenta uma tendência a profissionalização graças às técnicas trazidas pelos imigrantes italianos e portugueses. Já se utiliza da videira americana que melhor se adaptou ao clima tropical brasileiro (talvez seja este um dos principais fatores de sucesso do cultivo da uva na região de São Roque);

3ª fase 1900 – até aproximadamente final da década de 1950: processo de industrialização e profissionalização da produção do vinho com aplicações de técnicas mais modernas permitindo assim obter resultados e desempenho melhores.

Podemos dividir esta fase primeiramente num período de início do processo de profissionalização e logo após (a partir da década de 1920), o período em que realmente a região investiu e desenvolveu as técnicas vinicultoras, durando até aproximadamente a década de 1950, onde após a massificação da produção entra num processo de decadência.

4ª fase década de 1960 – atual: esta fase engloba o processo de decadência da viticultura são-roquense. Por motivos econômicos e climáticos e até mesmo por falta de investimentos em pesquisas, que se reduziram sensivelmente tanto a qualidade como a quantidade de vinho produzido, levando ao fechamento de diversas adegas (isso principalmente a partir da década de 1980). São Roque permanecendo hoje somente com o título de “terra do vinho”, sendo que os poucos fabricantes que restaram (aproximadamente treze adegas) fabricam seu vinho não de uvas nativas de São Roque, mas sim oriundas de outras partes do Estado ou mesmo de outros estados (exemplo: Rio Grande do Sul).

Há atualmente um movimento para tentar a reversão dessa situação, porém continua bem modesto em relação a todo o histórico e números do passado no ápice do cultivo da videira em São Roque.

E agora finalmente o vinho!

Na taça revela um lindo vermelho profundo, escuro, mas reluzente, brilhante, com lágrimas finas e em média intensidade que marcam no bojo.

No nariz apresenta aromas intensos e vivazes de frutas vermelhas, se destacam framboesa, groselha e cereja, com notas de especiarias, como pimenta, couro, algo de terra molhada e herbáceo.

Na boca é seco, as frutas vermelhas bem como os toques especiados ganham protagonismo como no aspecto olfativo, tem médio corpo, bom volume de boca, alcoólico, mas sem desequilibrar o conjunto do vinho, que se mostra macio, equilibrado, baixa acidez e taninos médios, porém aveludados. Final de média persistência.

Vinho não é só poesia engarrafada como dizia aquele poeta, mas história engarrafada também. Degustamos história, degustamos cultura! É muito gratificante e especial degustarmos vinhos com essa carga histórica atrelada de forma tão veemente, tão latente. A história é viva e plena, não é algo estático. Degustar o Genuíno Carménère foi, mais uma vez, a confirmação de que, mesmo com todas as adversidades do tempo e da atualidade, degustar um vinho da região de São Roque é viver de forma ativa e intensa a sua história e perceber, ou melhor, sentir que a região ainda pulsa vinho, pulsa a sua história e ainda é possível sim degustar vinhos de qualidade, bem feitos e que pequenos e médios produtores se engradecem pelo simples fato de personificar em seus vinhos a tipicidade da região, o fazer de homens e mulheres abnegados pelo amor a essa bebida que catapultou o prestígio dessa cidade ao Brasil. O nome que carrega, “Genuíno” talvez corrobore essa condição e carrega essa nome não é à toa! Sinto-me privilegiado e honrado pelo presente do Luciano, da Pemarcano Vinhos, e por degustar um Carménère brasileiro com um vermelho rubi intenso, escuro, brilhante, frutado, aromático, saboroso e que entrega as características da cepa no âmago de sua essência. Que São Roque continue me proporcionando grandes novidades espero por todo sempre. Tem 12,5% de teor alcoólico.

Sobre a Adega Terra do Vinho:

Em meados de 1966, a família Oliveira Santos decidiu dedicar-se a sua grande paixão: o Mundo do Vinho e abriu a Cantina Vieira Santos.

Empenho, dedicação e amor eram palavras de ordem dos irmãos, especialmente para o Moacyr. A Cantina cresceu, mudou e hoje se chama Adega Terra do Vinho. Como patriarca, certamente o Moacyr não imaginou que seu trabalho chegaria tão longe com o mesmo espírito e garra.

Sr. Moacyr

A paixão pelos vinhos fez nascer a pequena Adega do Moacyr com seus vinhos artesanais. Hoje a adega cresceu, mas continua trazendo, em cada garrafa, a mesma paixão.






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