Já que defendo, de forma consistente e insistente, que o
universo do vinho é vasto e inexplorado, vamos enaltecer tal máxima,
explorando, garimpando essa vastidão de rótulos personificados em regiões,
castas e tudo o mais.
E o melhor de todas essas experiências sensoriais é o contato
latente com a cultura e a história de regiões, dos países e dos terroirs com os
seus comportamentos que diretamente influenciam nas variedades que degustamos e
que também influenciam no modo de produção, de vinificação de todos os vinhos
que degustamos diariamente.
Sempre ouvi dizer que São Paulo, por exemplo, foi uma região
proeminente na produção de vinhos e mais, com certo protagonismo na história
vitivinícola brasileira. Mas nunca parei para pensar na dimensão dessa
informação, na relevância disso tudo e consequentemente nunca me atentei para a
possibilidade de degustar quaisquer vinhos das regiões contempladas pela
natureza nas terras paulistas.
E de uma forma quase que despretensiosa que a região de São
Roque entrou em meu caminho enófilo e que, para a minha simples e humilde
realidade de degustador de vinhos, está até mais intensa com algumas
degustações surpreendentes, positivamente falando.
E o mais importante de tudo: a valorização dos pequenos e
médios produtores! Dos produtores artesanais que, diante de sua importância
para o cenário vitivinícola brasileiro, se tornam grandes, embora pouco
valorizados e boicotados pela indústria do vinho. Mas isso é outra história...
Quando descobri um site chamado Pemarcano Vinhos os rótulos
de São Roque, conhecida como a “terra do vinho”, vem se tornando, razoavelmente
constante, em minha realidade e, depois das primeiras experiências, tenho sido
agraciado por alguns vinhos especiais pelo amigo Luciano, dono da Pemarcano,
com rótulos especiais.
E um desses produtores pequenos que vem me surpreendendo é a
Bella Aurora. Alguns já foram, claro, degustados e que realmente gostei.
Comecei pelo Dom Bernardino Touriga Nacional 2018! Um Touriga Nacional de São Roque!
Jamais esperaria que isso fosse acontecer! Claro que as uvas são oriundas do
Rio Grande do Sul, porém vinificadas nas dependências da Bella Aurora.
Depois veio outra surpresa inacreditável: Dom Bernardino Riesling 2020! Um vinho leve, frutado, uma acidez salivante. Resumindo: um
vinho saboroso. Então, diante disso, nada mais do que natural buscar novos
rótulos ou torcer para que o amigo Luciano, no ápice de sua gentileza, me
trouxesse algo novo dessa vinícola. E não é que veio?!
E veio com mais uma surpresa! Aquela que veio de forma
arrebatadora. Não demorei muito a degusta-lo diante da ansiedade que me tomava
de assalto. Então sem mais delongas o vinho que degustei e gostei veio, claro,
de São Roque, São Paulo, e se chama Dom Bernardino da casta Marselan não safrado.
E como nas resenhas dos rótulos degustados anteriormente
deste produtor, devo, preciso exaltar a nobreza histórica dessa região tão
importante para a cultura vitivinícola brasileira, claro, falo de São Roque e
também da casta Marselan.
São Roque: “A terra do vinho”
A cidade de São Roque foi fundada no dia 16 de agosto de
1657, mas começou como uma grande fazenda do capitão paulista Pedro Vaz de
Barros, que pertencia a uma família de bandeirantes e sertanistas. Vaz de
Barros também participou de diversas Bandeiras. O fundador da cidade, também
conhecido como Vaz Guaçú, contava com aproximadamente 1.200 índios que
trabalhavam em suas terras, onde eram cultivados trigo e uva.
Alguns anos após a morte de Vaz de Barros, seu irmão, Fernão
Paes de Barros, se estabeleceu na mesma região, onde construiu uma casa e uma
capela, que foram restauradas em 1945 pelo Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, a pedido do escritor Mário de Andrade, dono da propriedade.
Na região de São Roque, podem-se identificar referências à
vitivinicultura desde a sua fundação, por volta do final do século XVII.
Conforme informações encontradas e divulgadas pelos moradores da cidade,
através da tradição oral, ou mesmo citado pelo Professor Joaquim Silveira dos
Santos em seu artigo para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, volume XXXVII, nessa época toda a região pertencia a apenas três grandes
proprietários de terras: Pedro Vaz de Barros, seu irmão Fernão Paes de Barros e
o padre Guilherme Pompeu de Almeida, sendo que Pedro Vaz (tido como o fundador
da cidade) se estabeleceu próximo da atual igreja Matriz, seu irmão mais ao
norte, onde até hoje ainda se encontra a casa grande e capela Santo Antônio, e
por fim a fazenda do padre Guilherme Pompeu se encontrava na hoje atual cidade
de Araçariguama que faz divisa com Santana do Parnaíba.
Portanto realmente não se podem esperar grandes referências
desse período da história, afinal o Brasil era apenas uma colônia e que
existiam restrições da fabricação de qualquer tipo de produto em nosso solo, ou
seja, em tese tudo deveria vir de Portugal, inclusive o vinho.
Após um período difícil, o povoado originado por Pedro Vaz
foi elevado à categoria de Freguesia no dia 15 de agosto de 1768, recebendo o nome
de São Roque do Carambeí. No dia 10 de julho de 1832, a Freguesia foi elevada à
categoria de vila, mas o progresso do local só começou em 1838, quando
começaram as lavouras de milho, algodão, arroz, mandioca e farinha de mandioca,
cana de açúcar e derivados, legumes e verduras.
Em março de 1846, seis anos após instalar-se na vila o
destacamento da Guarda Nacional, Dom Pedro II e uma pequena comitiva
permaneceram um dia na cidade de São Roque. Com a passagem de Dom Pedro II,
Antonio Joaquim começou a se destacar no cenário político e, graças ao morador
ilustre, São Roque foi elevada à categoria de cidade no dia 22 de abril de
1864.
Após esse longo período de estagnação, o primeiro registro
oficial de plantação de uvas na região de São Roque se dá por volta de 1865,
quando o Doutor Eusébio Stevaux inicia uma pequena plantação na sua fazenda em
Pantojo. Pela mesma época, um colono italiano adquire uma pequena propriedade
no bairro de Setúbal, alguns anos mais tarde um português na terra do então
Sítio Samambaia forma um razoável vinhedo e inicia o processo de fabricação do
vinho.
Já em 1875 foi inaugurada a Estrada de Ferro Sorocabana, que
ligou a cidade de São Paulo a São Roque e Sorocaba. Após alguns anos, em 1884,
começou a grande chegada de imigrantes à cidade, fazendo com que as vinícolas
aparecessem novamente e ganhassem força nos anos seguintes. Em 1924, a cidade
já contava com 17.300 habitantes e foram produzidos 10 mil litros de vinho a
cada ano, tendo doze produtores de vinhos, sendo cinco deles italianos.
O que possibilitou o retorno da cultura da uva e fabricação
do vinho foi a importação de videiras oriundas dos Estados Unidos, pois estas
eram mais resistentes ao clima brasileiro. Dentre as principais videiras
trazidas estão inicialmente a “Izabel”, a “Seibel 2” (importada da França),
curiosamente trazida por imigrantes italianos que se instalaram na região e
posteriormente a “Niágara Branca”, oriunda da região do Alabama, EUA.
Portanto, a divisão do período da cultura vinícola de São
Roque, desde a fundação da cidade até a época atual em quatro fases distintas:
1ª fase: 1657 – 1880: importação de videiras portuguesas,
plantações domiciliares, sem qualquer cunho comercial, ou seja, somente para
consumo próprio.
2ª fase: 1880 – 1900: Retomada da viticultura são-roquense,
ainda que amadora, quase que familiar, continua voltada basicamente para o
consumo e pequeno varejo. Já apresenta uma tendência a profissionalização
graças às técnicas trazidas pelos imigrantes italianos e portugueses. Já se
utiliza da videira americana que melhor se adaptou ao clima tropical brasileiro
(talvez seja este um dos principais fatores de sucesso do cultivo da uva na
região de São Roque);
3ª fase 1900 – até aproximadamente final da década de 1950:
processo de industrialização e profissionalização da produção do vinho com
aplicações de técnicas mais modernas permitindo assim obter resultados e
desempenho melhores.
Pode-se dividir esta fase primeiramente num período de início
do processo de profissionalização e logo após (a partir da década de 1920), o
período em que realmente a região investiu e desenvolveu as técnicas
vinicultoras, durando até aproximadamente a década de 1950, onde após a
massificação da produção entra num processo de decadência.
4ª fase década de 1960 – atual: esta fase engloba o processo
de decadência da viticultura são-roquense. Por motivos econômicos e climáticos
e até mesmo por falta de investimentos em pesquisas, que se reduziram
sensivelmente tanto a qualidade como a quantidade de vinho produzido, levando
ao fechamento de diversas adegas (isso principalmente a partir da década de
1980). São Roque permanecendo hoje somente com o título de “terra do vinho”,
sendo que os poucos fabricantes que restaram (aproximadamente treze adegas)
fabricam seu vinho não de uvas nativas de São Roque, mas sim oriundas de outras
partes do Estado ou mesmo de outros estados (exemplo: Rio Grande do Sul).
Há atualmente um movimento para tentar a reversão dessa
situação, porém continua bem modesto em relação a todo o histórico e números do
passado no ápice do cultivo da videira em São Roque.
Marselan
A Marselan é uma uva tinta que vem aparecendo, cada vez mais,
nos rótulos na versão varietal, ganhando em notoriedade. Ela faz parte do
seleto grupo das 6 uvas já aprovadas pelo INAO (Institut National de L’Origine
et de La Qualité) para compor a lista das uvas em Bordeaux e Bordeaux
Superiéur. Juntam a esse time as tintas Castets, Arinarnoa, Touriga Nacional,
bem como as brancas Alvarinho e Liliorila.
A Marselan não surgiu naturalmente. Nasceu pelas mãos do
ampelógrafo parisiense Paul Truel, criador de mais de 12 outras variedades de
uvas, em 1961, no sul da França. O nome da casta foi inspirado na cidade de
Marseillan próxima a Montpellier. É lá onde fica localizado o INRA – centro de
pesquisa agronômica, onde ele trabalhou até se aposentar em 1985.
Quando Paul idealizou a Marselan ele tinha em mente
potencializar, unir e melhorar as características de duas uvas conhecidas: a
Cabernet Sauvignon e a Grenache. Da Cabernet Sauvignon, Truel queria preservar
a potência, com rendimentos maiores, por outro lado, da Grenache – uva que se
adaptou muito bem aos climas quentes – ele queria uma uva que tivesse
resistência às altas temperaturas e, claro, uma nova casta resistente às
doenças.
No início, ela não ganhou destaque e não foi o sucesso
esperado, devido à baixa produtividade e aos pequeninos bagos. Com o aumento da
demanda por uvas resistentes às moléstias – oídio, ácaros e podridão cinzenta,
por exemplo -, ela foi incluída na listagem oficial de registros quase 30 anos
depois, em 1990. Atualmente, é possível encontrá-la em terroirs com
características distintas e ela deixa sua marca talentosa em diversos estilos,
seja em um blend ou mesmo reinando sozinha em um varietal.
Muitos a utilizaram por anos apenas em pequenas porções em vinhos
de corte, até que em 2002 surgiu o primeiro vinho 100% Marselan do mercado, o
francês Domaine Devereux. De lá para cá, a Marselan começou a ser exportada
para diferentes países, e vem ganhando espaço na Califórnia, Brasil e até na
China, onde o Chateau Lafite Rotschild implantou vinhedos de Marselan mirando o
mercado interno chinês.
Falando em países produtores, a Marselan vem sendo muito
cultivada no Brasil, e a cada safra que passa novos produtores lançam seus
rótulos. A Marselan é muito interessante para os produtores nacionais,
especialmente os da Serra Gaucha, por sua boa resistência a doenças fúngicas,
que aparecem ao menor sinal de umidade. Vinificada, a uva apresenta bebidas
muito agradáveis e com grande potencial de guarda.
Uma característica é o ótimo equilíbrio entre taninos e
acidez, além do álcool sempre bem incorporado. Estas características fazem com
que os vinhos sejam de fácil consumo tanto com um ano de garrafa quanto com 5
ou 6. O estágio em barris de carvalho deixa os vinhos de Marselan ainda mais
interessantes, dando um aspecto de vinhos da Toscana – com estrutura, corpo,
mas muita elegância.
E agora finalmente o vinho!
Na taça revela um vermelho rubi, com alguma intensidade e
halos granada, com lágrimas finas e em média intensidade.
No nariz é o destaque, trazendo aromas de frutas vermelhas
maduras, como groselha, cereja, morango, além de notas de especiarias que
lembram ervas, com um toque de terra molhada e couro.
Na boca é seco, típico da variedade, leve para média
estrutura, sedoso, aveludado, graças o equilíbrio entre acidez, média, taninos,
domados e álcool, bem integrado, além do protagonismo da fruta, como no aspecto
olfativo e final curto.
Degustar regiões pouco “corriqueiras” como São Roque, claro, pelo menos para esse reles enófilo que vos fala, é como se estabelecêssemos um contato com um Novo Mundo e, após esse contato, a necessidade se torna premente de garimpar, descobrir, conhecer e deleitar, como a universo inexplorado e vasto, como sempre costumo falar de forma, confesso, demasiada. Novas experiências são conquistadas! Essa é a nossa conquista! A mais especial e pacífica possível: o direito inalienável de um enófilo à degustação. Dom Bernardino Marselan é simples, mas especial, não apenas por ser de São Roque, não apenas por ser um pequeno produtor, mas pela sinceridade pela qual foi concebido. Um bom vinho! Tem 12,5% de teor alcoólico.
Sobre a Vinícola Bella Aurora:
Vinícola fundada na década de 1920 por Bernardino Pereira
Leite imigrante português iniciou sua produção para consumo caseiro. A produção
em escala comercial teve início em 1932.
Com mais de 85 anos, Vinhos Bella Aurora mantém sua tradição
familiar na produção de saborosos vinhos, contando com uma excelente estrutura
de atendimento aos visitantes e uma equipe de representantes comercial em todo
estado de São Paulo.
A Vinícola proporciona um passeio turístico para quem busca
contato com a natureza. Neste passeio poderá degustar bons vinhos e sucos, além
de poder adquirir toda a linha de produtos típicos da Vinícola Bella Aurora.
Para melhor atender os clientes, a cantina dos Vinhos Bella Aurora foi montada
no interior de um autêntico tonel de madeira com capacidade para 120 mil
litros.
Mais informações acesse:
https://www.bellaaurora.com.br/
Video institucional Bella Aurora – link:
https://www.youtube.com/watch?v=pihf88FDhUE
Referências:
“Assembleia Legislativa de São Paulo”: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=301135
“Blog do Lullão”: http://www.lullao.com/p/historia-do-vinho-em-sao-roque.html?m=1
“Sites
Google”: https://sites.google.com/site/historiadovinhodesaoroque/home/historia-do-vinho-de-sao-roque
“Tosin Consultoria”: https://tosinconsultoria.com.br/marselan-que-uva-e-essa/
“Enocultura”: https://www.enocultura.com.br/cruzamento-entre-uvas-marselan/