Quando degustei, pela primeira vez, um Malbec da região
francesa de Cahors, o que convenhamos não é algo habitual, prometi que buscaria
novas opções, novos rótulos para continuar seguindo o meu precoce caminho pela
região que, de fato, é a mãe da Malbec que se notabilizou em terras argentinas,
do outro lado do Oceano Atlântico.
Na realidade não foi sequer um Malbec puro, genuíno, ou seja,
um Malbec 100%, mas um corte com a casta Merlot. Havia a predominância da
Malbec, mas não era um Malbec pleno, cheio, integral. Precisava, além de
providenciar mais um rótulo da região francesa de Cahors, de um Malbec 100%!
Depois da experiência muito interessante, diria atípica, mais
emblemática da degustação do Carte Noire Malbec e Merlot da safra 2013, eu
ansiava por mais um rótulo, era preciso. As minhas humildes percepções
sensoriais clamavam por mais um momento como esse.
E um se apresentou
para mim, diante dos meus olhos, da forma mais despretensiosa possível. Parece
que dessa forma tem uma mágica, uma forma especial e peculiar. E para variar
muito me interessou. Porém para ter apenas uma noção básica do que eu estava
adquirindo, pesquisei algumas referências sobre o rótulo e pouco encontrei de
relevante apenas algumas descrições curtas e soltas nesses perniciosos
aplicativos de vinhos.
Mas descobri o site do produtor: Chateau Laur. Não vou, pelo
menos ainda, tecer detalhes sobre a vinícola, mas li que a mesma tem uma
posição de destaque e importância na produção de grandes Malbecs na região de
Cahors e isso me encheu de entusiasmo para comprar esse rótulo. Quem sabe com
esse dado tão relevante, os medos e possíveis preconceitos se dissipem?
Foi o que aconteceu! Fui tomado por um entusiasmo tão grande
que comprei sem muitas hesitações o tão esperado rótulo. Ah esse rótulo é sim,
um Malbec na sua versão integral! O momento tão esperado chegou!
Mais uma vez o sudoeste francês, a região de Cahors inundará
a minha simples e humilde taça. Um momento especial, haja vista que a região
vizinha a famosa Bordeaux, não figura com tantas vezes, nas mesas dos
brasileiros, tão diferente da tão disseminada Malbec dos hermanos.
Então sem mais delongas a rolha espocou, aquele barulho
agradável que inaugura o ritual da degustação, o líquido inunda a taça de forma
implacável, os sentidos aguçados e a degustação acontece e...
O vinho que degustei e gostei veio de Cahors, no sudoeste
francês, e se chama Baron Du Tertre Réserve, da casta Malbec e a safra é 2016.
Um vinho estupendo, delicioso, um Malbec atípico, que não revela alguns toques
óbvios do mais famoso, os argentinos. Mas para entender melhor essa nuances,
antes de quaisquer juízos de valor intolerantes, convém conhecer um pouco da
história de Cahors e do seu Malbec.
Cahors, o berço da Malbec
De Cahors na França vem a famosa uva Malbec muito plantada na Argentina e hoje uva símbolo de lá. Mas ela não é argentina. A uva Malbec é alóctone da Argentina e autóctone de Cahors. Sim Cahors é o seu verdadeiro berço, onde ela nasceu e recebeu o nome de Côt. Pelo que contam os registros de época, as primeiras plantações de Malbec, uva conhecida na região como “Côt” datam de 92 d.C.
O vinho é frequentemente citado como o mais antigo da Europa
e foi conhecido devido a sua cor intensa como o vinho “negro” de Cahors. Os
vinhos de Cahors desde a idade média são longevos e escuros com forte
personalidade. As plantações ocupam atualmente cerca de 4.300 hectares, sendo a
produção máxima permitida de 50 hectolitros por hectare.
Na região, a uvas permitidas para vinhos tintos são a Côt
(Malbec), a Tannat, a Cabernet Franc e a Gamay em Coteaux du Quercy. Cahors
permanece com a marca da antiga Côt que se revela em personalidade forte
insistente, arrojada e com expressão mais rústica, compensando em longevidade.
Oferece assim, robustez, estrutura e boa guarda. A uva é liberada para os cortes de Bordeaux, mas pouco utilizada por lá, hoje em dia.A região de Cahors fica a cerca de 230 KM de Bordeaux no departamento de Lot, na região Sud-Est da França fazendo fronteira com o departamento da Dordogne.
Cahors sofreu forte influência de seu poderoso vizinho,
Bordeaux, em sua dramática história. O vinhedo foi criado pelos romanos e,
durante a Idade Média, seu prestígio teve expressivo crescimento. O casamento
de Eleanor de Aquitânia com Henrique II, rei da Inglaterra, abriu as portas do
grande mercado consumidor inglês, antes dominado pelos vinhos de Bordeaux.
No entanto, os poderosos produtores e comerciantes
bordaleses, sentindo-se ameaçados, mobilizaram-se para pressionar Londres e
conseguiu arrancar do rei da Inglaterra alguns privilégios exorbitantes, o que
resultou num duro golpe para os produtores gascões. Além de sofrerem pesada
taxação, os vinhos do sudoeste só podiam chegar à capital inglesa depois que
toda a produção bordalesa estivesse vendida.
Tal regra durou cinco séculos (foi interrompida apenas em três curtos períodos) e o vinho da região sentiu o golpe. Esta conduta só foi abolida em 1776, pelo liberal ministro de finanças de Luís XVI, Jacques Turgot, quando se iniciou um novo ciclo dourado dos fermentados de Cahors.
Apesar da Revolução Francesa e das guerras do Império já no
século XIX, 75% do vinho da região era exportado e um terço das terras
agriculturáveis eram dedicadas à vinha, que cobria a impressionante área de 40
mil hectares. A região enfrentou bem a praga do oídio (de 1852 a 1860) e a
superfície plantada subiu ainda mais, chegando a 58 mil ha. Para se ter uma
ideia da queda que viria mais tarde, a área do vinhedo de Cahors hoje é de
apenas 4.200 ha.
Mas o território teve pior sorte ao enfrentar a filoxera no
final do século XIX. Como se sabe, todos os vinhedos atacados no mundo tiveram
de ser replantados, desta vez, de forma enxertada. Então, as vinhas de Malbec
reagiram muito mal a esta nova situação, dando origem a fermentados medíocres,
com qualidade muito abaixo da que tinha anteriormente.
Apenas no final dos anos 1940, depois de muita pesquisa,
chegou-se ao clone 587 da Malbec, que teve muito boa adaptação. Assim se
retomou, então, sua marcha ascendente até chegarmos a 1971, quando Cahors é
declarada região AOC (Appellation d'Origine Contrôlée, denominação de origem
controlada).
As normas dessa denominação determina que o vinho deve ser
composto de, pelo menos, 70% de Malbec, sendo o restante feito com a tânica
Tannat e a macia Merlot. A Cabernet Sauvignon e a Cabernet Franc não são
permitidas. O vinho é bastante escuro e encorpado, com boa fruta e mais austero
e seco do que o Malbec argentino. Dependendo da sub-região, pode ser mais leve
e para consumo mais precoce, ou mais estruturado e passível de longa guarda.
E agora finalmente o vinho!
Na taça revela um vermelho rubi intenso, quase escuro, com
reflexos violáceos que trazia um brilho bonito, com lágrimas finas e que logo
se dissipavam das paredes do copo.
No nariz é pouco aromático, apenas uma discreta nota de
frutas pretas, talvez groselha negra ou amora, com toques de especiarias,
alguma rusticidade típica da região berço da Malbec, Cahors.
Na boca é seco, de médio corpo, um pouco alcoólico, mas bem
equilibrado com o conjunto do vinho, pouco ou quase nada frutado, com a
presença rústica graças as notas terrosas, de couro, tabaco e de especiarias,
algo de pimenta, talvez. Os taninos são estruturados e marcantes, com uma boa
acidez e um final de média persistência.
Mais uma página escrita em minha história de enófilo. E foi
um capítulo consistente e especial na minha caminhada no vasto, inexplorado e
incrível universo dos vinhos. Degustar um Malbec de Cahors é especial! Não é
todo dia, não é habitual, é diferente, é diria uma sensação indescritível. Os
sentidos agradecem as reações sensoriais, as experiências se revelam únicas,
singulares. É claro que as percepções são pessoais, cada um se identifica com
aquilo que te faz bem, que te traga prazer, óbvio, mas é preciso entender as
nuances, as propostas que cada vinho entrega, com o seu terroir, as
características marcantes de sua terra e de sua cultura. O Baron Du Tertre
Réserve trazem notas mais rústicas, e não o frutado típico do vinho argentino,
os taninos mais intensos, poderosos, até um pouco mais adstringentes. E são
essas nuances que faz do mundo do vinho algo apaixonante e especial. Um belo
vinho, um vinho especial, um vinho de personalidade, um vinho que ficará
marcado! E que muitos outros vinhos de Cahors encha de história novas páginas
da minha caminhada de um simples, mas feliz, enófilo. Tem 13% de teor
alcoólico.
Sobre o Chateau Laur:
Desde que fundou as suas atividades em 1881, é nas altas
colinas de Floressas, berço ancestral da vinha de Cahors, que a família Laur se
anima por uma ambição constante há seis gerações: produzir vinhos de qualidade.
Hoje, três gerações trabalham juntas, sendo que enquanto os
mais velhos trazem o método tradicional, os mais novos melhoram o cuidado
contínuo com as vinhas e as colheitas. “Château Laur” é uma propriedade de 46
hectares com vinhas que se beneficiam de um terroir de excelência composto por
solos argilosos – calcários ferruginosos intrincados, bem como uma exposição
ideal que garante um sol privilegiado à vinha.
A família Laur acumulou o know-how de gerações no trabalho
com a Malbec, casta única e histórica da AOC Cahors, e assim produzir com excelência
os varietais da casta. No momento em que atingem a maturidade ideal, as uvas
são colhidas delicadamente e curadas rapidamente para preservar o máximo de
aroma e garantir um perfeito estado sanitário da vindima.
A vinícola exerce um controle tradicional das temperaturas
para as macerações preferenciais em macerações frias assim como as macerações
quentes no final da fermentação. Cada parcela e cada videira são vinificados
separadamente para assim criar o conjunto mais harmonioso e mais elegante. O
vinho é envelhecido em prestigiadas barricas de carvalho francês de tal forma
que obtém um casamento harmonioso e complexo entre os aromas do terroir e os
libertados pelos finos grãos da barrica (notas de tosta, chocolate, baunilha,
outros).
A riqueza e a diversidade dos terroirs incentivaram a família a criar vários cuvées onde cada um expressa uma tipicidade, um carácter assim como uma expressão de terroir diferente. O “L’hor” cuvée, o cuvée confidencial da propriedade, é um dos mais belos exemplos da denominação e é um dos locais certamente obrigatórios quando se fala sobre os grandes rótulos.
Mais informações acesse:
https://vignobles-laur.fr/en/chateau-laur-wines/
Referências:
Portal “Enoestilo”:
https://www.enoestilo.com.br/cahors-o-berco-malbec-2000-anos-de-historia/ e https://www.enoestilo.com.br/mapas-vinho-dicas-regiao-de-cahors/
“Revista Adega”: https://revistaadega.uol.com.br/artigo/cahors-outra-terra-da-malbec_439.html
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