A Malbec é da Argentina! É inegável! Podem parar! Engana-se
quem pensa isso! Claro que os grandes rótulos dessa importante cepa são
argentinos, atualmente são os melhores e maiores produtores de vinhos da casta
Malbec do mundo. E já vem de algum tempo, diga-se de passagem. Mas a França tem
a paternidade da Malbec e guarda, em suas terras, histórias emblemáticas que
envolvem os extremos de momentos de glória e tragédia, tendo a própria
Argentina exercendo um protagonismo no caminho da Malbec que culminou com o
sucesso dos dias contemporâneos. Porém, admito que, em um passado razoavelmente
distante, eu também desconhecia essa história e atribuía, diante ápice da minha
insegurança, que a Malbec era dos hermanos.
A Malbec tem as suas origens em uma região chamada Cahors, no
sudoeste francês e que fica muito próximo a mais conhecida das regiões
vitivinícolas daquele país, Bourdeaux. Não me recordo quando descobri que a
casta pertencia a região francesa de Cahors, sequer conhecia a existência desse
local na França. Provavelmente foi uma descoberta de forma mais despretensiosa
do mundo, garimpando outras informações. Quando descobri foi muito relevante,
levando em consideração a importância que a história do vinho tem para mim e me
pus a ler, a descobrir rótulos disponíveis para venda aqui no Brasil.
Depois da intensa leitura sobre Cahors, decidi buscar vinhos
da casta Malbec dessa região, como um bom enófilo ávido por novidades e experiências
sensoriais agradáveis comecei a procurar e percebi que a oferta não é muito
grande e os poucos rótulos disponíveis são muito caros para a minha realidade
econômica. Pensei, um tanto quanto frustrado: Jamais terei a alegria, o prazer
de degustar um Malbec de Cahors! Parecia muito distante das minhas
possibilidades. Após essa triste constatação decidi esquecer e não procurar
mais rótulos e tão pouco ler sobre a região francesa de Cahors. Queria abstrair
de minha mente.
Porém a vida parece lhe conceder oportunidades e navegando o
site de uma conhecida loja virtual de venda de vinhos, mais uma vez
despretensiosamente, procurando vinhos aleatoriamente, eis que, diante de meus
olhos que, incrédulos, testemunhou um vinho da região de Cahors, um corte de
Malbec e Merlot, a um preço extremamente competitivo, atraente, em comparação
aos valores que tinha pesquisado quando havia conhecido a região francesa. Na
realidade foi um misto de animação e receio: como um vinho dessa região custar
tão pouco em comparação com os outros vinhos da região disponíveis para venda
no Brasil? Muita coisa passou pela minha cabeça, as perguntas ecoavam de forma
insistente, mas necessária: seria bom esse vinho? Por que é tão barato? Fiz
como sempre algumas pesquisas sobre o rótulo, não tinham muitas referências sobre
o mesmo, além do próprio site da loja virtual e, diante da situação que se
descortinava diante dos meus olhos, resolvi arriscar e comprar o vinho que
estava na faixa dos R$ 49,90!
Decidi, quando da chegada do vinho, não levar muito tempo
para degusta-lo até porque a safra do mesmo é ano de 2013, com 8 anos de vida!
Outro fator admito, que me chamou atenção, o tempo de safra do vinho. Adoro
esses vinhos evoluídos! Eis então que o momento tão esperado chegou! Estou
radiante, inspirado, a começar pelas linhas que constroem essa resenha.
Finalmente degustarei um vinho do berço da Malbec, Cahors. O ritual foi
fielmente seguido para dar um ar de celebração ao momento tão especial. A rolha
se desprende da garrafa e a bebida inunda a taça e...voilá! Inacreditável! Soberbo! Que vinho especial, quanta
diferença, a Malbec em sua diferente percepção em relação a fama que adquiriu
do outro lado do oceano, nas terras argentinas. O vinho que degustei e gostei
veio da região de Cahors, na França e se chama Carte Noire, um AOC (Appellation
d'origine contrôlée) que é o equivalente ao DOC (Denominação de Origem
Controlada), com o corte das castas Malbec (80%) e Merlot (20%) da safra 2013.
E como a história não pode faltar e foi com ela que cheguei a este rótula,
vamos falar um pouco de Cahors.
Cahors, o berço da Malbec
De Cahors na França vem a famosa uva Malbec muito plantada na
Argentina e hoje uva símbolo de lá. Mas
ela não é argentina. A uva Malbec é alóctone da Argentina e autóctone de
Cahors. Sim Cahors é o seu verdadeiro berço, onde ela nasceu e recebeu o nome
de Côt. Pelo que contam os registros de época, as primeiras plantações de
Malbec, uva conhecida na região como “Côt” datam de 92 d.C. O vinho é
frequentemente citado como o mais antigo da Europa e foi conhecido devido a sua
cor intensa como o vinho “negro” de Cahors. Os vinhos de Cahors desde a idade
média são longevos e escuros com forte personalidade. As plantações ocupam
atualmente cerca de 4.300 hectares, sendo a produção máxima permitida de 50
hectolitros por hectare.
Na região, a uvas permitidas para vinhos tintos são a Côt
(Malbec), a Tannat, a Cabernet Franc e a Gamay em Coteaux du Quercy. Cahors
permanece com a marca da antiga Côt que se revela em personalidade forte
insistente, arrojada e com expressão mais rústica, compensando em longevidade.
Oferece assim, robustez, estrutura e boa guarda. A uva é liberada para os
cortes de Bordeaux, mas pouco utilizada por lá, hoje em dia.A região de Cahors
fica a cerca de 230 KM de Bordeaux no departamento de Lot, na região Sud-Est da
França fazendo fronteira com o departamento da Dordogne.
Cahors sofreu forte influência de seu poderoso vizinho,
Bordeaux, em sua dramática história. O vinhedo foi criado pelos romanos e,
durante a Idade Média, seu prestígio teve expressivo crescimento. O casamento
de Eleanor de Aquitânia com Henrique II, rei da Inglaterra, abriu as portas do
grande mercado consumidor inglês, antes dominado pelos vinhos de Bordeaux. No
entanto, os poderosos produtores e comerciantes bordaleses, sentindo-se
ameaçados, mobilizaram-se para pressionar Londres e conseguiram arrancar do rei
da Inglaterra alguns privilégios exorbitantes, o que resultou num duro golpe
para os produtores gascões. Além de sofrerem pesada taxação, os vinhos do
sudoeste só podiam chegar à capital inglesa depois que toda a produção
bordalesa estivesse vendida. Tal regra durou cinco séculos (foi interrompida
apenas em três curtos períodos) e o vinho da região sentiu o golpe. Esta
conduta só foi abolida em 1776, pelo liberal ministro de finanças de Luís XVI,
Jacques Turgot, quando se iniciou um novo ciclo dourado dos fermentados de
Cahors. Apesar da Revolução Francesa e das guerras do Império já no século XIX,
75% do vinho da região era exportado e um terço das terras agriculturáveis eram
dedicadas à vinha, que cobria a impressionante área de 40 mil hectares. A
região enfrentou bem a praga do oídio (de 1852 a 1860) e a superfície plantada
subiu ainda mais, chegando a 58 mil ha. Para se ter uma ideia da queda que
viria mais tarde, a área do vinhedo de Cahors hoje é de apenas 4.200 ha. Mas o
território teve pior sorte ao enfrentar a filoxera no final do século XIX. Como
se sabe, todos os vinhedos atacados no mundo tiveram de ser replantados, desta
vez, de forma enxertada. Então, as vinhas de Malbec reagiram muito mal a esta
nova situação, dando origem a fermentados medíocres, com qualidade muito abaixo
da que tinha anteriormente. Apenas no final dos anos 1940, depois de muita
pesquisa, chegou-se ao clone 587 da Malbec, que teve muito boa adaptação. Assim
se retomou, então, sua marcha ascendente até chegarmos a 1971, quando Cahors é
declarada região AOC (Appellation d'Origine Contrôlée, denominação de origem
controlada).
As normas dessa denominação determina que o vinho deve ser
composto de, pelo menos, 70% de Malbec, sendo o restante feito com a tânica
Tannat e a macia Merlot. A Cabernet Sauvignon e a Cabernet Franc não são
permitidas. O vinho é bastante escuro e encorpado, com boa fruta e mais austero
e seco do que o Malbec argentino. Dependendo da sub-região, pode ser mais leve
e para consumo mais precoce, ou mais estruturado e passível de longa guarda.
E agora finalmente o vinho!
Na taça um lindo e envolvente vermelho rubi intenso, quase
escuro, com alguns reflexos violáceos, além de lágrimas grossas e abundantes,
desenhando as paredes do copo.
No nariz traz notas de frutas negras, tais como cereja e
groselha negra, com algum toque terroso e de tabaco, couro revelando alguma
rusticidade.
Na boca é seco, as frutas se fazem presentes, mas não em
evidência, com alguma estrutura graças a Malbec, mas macio e fácil de degustar
certamente pelo tempo de safra bem como o percentual da Merlot que o torna
versátil. Apresenta taninos presentes e pronunciados, mas domados, com acidez
média, percebendo também o couro com um final de média persistência.
Mais uma página da minha história de um simples enófilo foi
escrita de forma singular. Degustar um vinho a base da casta Malbec de Cahors,
o berço da Malbec, foi uma experiência sensorial relevante e especial. Uma
página foi escrita, mas tenho a avidez, a necessidade de que novos capítulos
sejam escritos e que venham novos rótulos da emblemática e tradicional Cahors
para que possamos desbravá-la por intermédio de sua bebida, do líquido nobre e
poético, que inspira, que nos traz o prazer sensorial que proporciona o mais
puro e genuíno deleite. Carte Noire trouxe para mim uma nova percepção, uma
nova personificação da Malbec que não conhecia, com a estrutura, as notas de
frutas maduras, a rusticidade e a plenitude de um vinho que, mesmo com seus 8
anos de vida, se revelou pleno e vivo, como a história de sua região, que,
embora não tenha a fama da Malbec argentina, onde ganhou um novo lar e uma nova
concepção, mostra ainda que tradição e modernidade está, a cada dia, fazendo
Cahors renascer e mostrar toda a sua força e importância, com vinhos de muita
tipicidade. Tem 12% de teor alcoólico.
Sobre a Vinovalie:
A Vinovalie Les Vignerons foi criada em 2006 e é formada por
quatro cooperativas de vinhos dentro da França: Vignerons Rabastens, Cave de
Técou (Tarn), Cave de Fronton (Haute-Garonne) e Côtes D’Olt (Lot) e alguns
Châteaux como o Les Bouysses. Cada etapa do processo de criação dos vinhos é
baseada na paixão e no know-how complementares dos homens: viticultores, adegas
e enólogos.
O consumidor está no centro das áreas de inovação. Cientes do
papel a desempenhar, a vinícola está empenhada numa abordagem típica de
I&D, desde o trabalho na vinha à distribuição dos vinhos.
Mais informações acesse:
Referências de pesquisa:
Portal “Enoestilo”: https://www.enoestilo.com.br/cahors-o-berco-malbec-2000-anos-de-historia/ e https://www.enoestilo.com.br/mapas-vinho-dicas-regiao-de-cahors/
“Revista Adega”: https://revistaadega.uol.com.br/artigo/cahors-outra-terra-da-malbec_439.html
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