Me pego refletindo se ter essa preocupação de regiões,
terroirs, de safras, de potencial de guarda, de países é válido, haja vista que
teríamos que apenas nos permitir degustar. Mas até para a simples manifestação
da degustação, para se ter o prazer ou a qualidade nesse simplório momento,
vejo como necessário ter o mínimo entendimento desses, digamos, quesitos.
Quesitos esses que também podem formatar a nossa
identificação com os vinhos que degustamos, isso, creio, seja o mais relevante.
Até porque o aprendizado, o caminho a ser percorrido na estrada do vinho, passa
por isso também.
Claro que tais entendimentos não precisam ser tão
aprofundados, não há a necessidade de sermos catedráticos nesses assuntos,
claro que se for de desejo o estudo pode ser vislumbrado, mas o mínimo pode ser
entendido ou absorvido para melhorar, ainda mais, na qualidade do que inunda as
nossas taças.
De algum tempo para cá tenho me enamorado, cada vez mais,
pelos Tannats brasileiros! Claro que a referência da casta que temos é a uruguaia,
com os seus parrudos rótulos, dada a devida proposta de vinho, claro, mas assim
são conhecidos: vinhos austeros, intensos, marcantes e complexos.
O que percebo, observo a cada experiência sensorial dos
nossos Tannats é a fruta protagonizando, em sinergia com a madeira, com vinhos
mais saborosos, intensos também, mas não tão parrudos, encorpados como os
tradicionais uruguaios.
diferença, as especificidades de cada um, de cada terroir.
Uma não supera a outra, a diferença, repito, é a grande maravilha do vasto e
ainda inexplorado universo do vinho e é por isso que ele é encantador. E isso é
fomentado pela busca do conhecimento.
E uma região brasileira vem despontando, além da tipicidade,
como também na expertise no cultivo e produção da Tannat, é a Campanha Gaúcha.
A campanha sempre foi o “patinho feio” da gigante vizinha Serra Gaúcha, ficando
sempre no esquecimento.
Porém hoje a Campanha se tornou ou vem se tornando uma grata
realidade, entregando tipicidade e se igualando, em qualidade atestada, na
produção de grandes vinhos e a Tannat vem se destacando. E graças a Campanha os
Tannats brasileiros invadiram a minha taça e adega e de lá teimam em sair.
E o vinho de hoje traz uma novidade: o produtor. Não o
conhecia e achei a sua linha de rótulos com valores extremamente atrativas, nos
provando, ainda que de forma escassa, de que podemos encontrar vinhos, com
propostas mais “audaciosas”, ou seja, complexas, com preços verdadeiramente
atraentes, embora isso tudo seja um tanto quanto subjetivo.
E ele já está a pelo menos 3 anos na adega, evoluindo e hoje,
aos 8 anos de garrafa, me parece no auge, no ápice para uma boa e satisfatória
degustação. E é chegada a hora da degustação! Sem mais delongas o vinho que
degustei e gostei teve as uvas oriundas da Campanha Gaúcha e vinificado na
Serra Gaúcha e se chama Parole di Famiglia, um 100% Tannat da safra 2015. E
para não perder o costume, claro, vamos às histórias, vamos de Campanha Gaúcha.
Campanha Gaúcha
Entre o encontro de rios como Rio Ibicuí e o Rio Quaraí,
forma-se o do Rio Uruguai, divisa entre o Brasil, Argentina e Uruguai. Parte da
Campanha Gaúcha também recebe corpo hídrico subterrâneo, o Aquífero Guarani
representa a segunda maior fonte de água doce subterrânea do planeta, dele
estando 157.600 km2 no Rio grande do Sul.
A Campanha Gaúcha se espalha também pelo Uruguai e pela
Argentina garante uma cumplicidade com os “hermanos” do outro lado do Rio
Uruguai. Os costumes se assemelham e os elementos locais emprestam rusticidade
original: o cabo de osso das facas, o couro nos tapetes, a tesoura de tosquia
que ganha novas utilidades.
No verão, entre os meses de dezembro a fevereiro, os dias
ficam com iluminação solar extensa, contendo praticamente 15 horas diárias de
insolação, o que colabora para a rápida maturação das uvas e também ajuda a
garantir uma elevada concentração de açúcar, fundamental para a produção de
vinhos finos de alta qualidade, complexos e intensos.
As condições climáticas são melhores que as da Serra Gaúcha e
tem-se avançado na produção de uvas europeias e vinhos de qualidade. Com o bom
clima local, o investimento em tecnologia e a vontade das empresas, a região
hoje já produz vinhos de grande qualidade que vêm surpreendendo a vinicultura
brasileira.
A mais de 150 anos, antes mesmo da abolição da escravatura, a
fronteira Oeste do Rio Grande do Sul já produzia vinhos de mesa que eram
exportados para os países do Prata (Uruguai, Argentina e Paraguai) e vendidos
no Brasil.
A primeira vinícola registrada do Brasil ficava na Campanha
Gaúcha. Com paredes de barro e telhado de palha, fundada por José Marimon, a
vinícola J. Marimon & Filhos iniciou o plantio de seus vinhedos em 1882, na
Quinta do Seival, onde hoje fica o município de Candiota.
E o mais interessante é que, desde o início da elaboração de
vinhos na região, os vinhos da Campanha Gaúcha comprovam sua qualidade
recebendo medalha de ouro, conforme um artigo de fevereiro de 1923, do extinto
jornal Correio do Sul de Bagé.
IP (Indicação de Procedência) da Campanha Gaúcha
Em 2020 a Campanha Gaúcha ganhou reconhecimento de Indicação
de Procedência (IP) para seus vinhos. Aprovada pelo Inpi na modalidade de I.P.,
a designação vem sendo utilizado pelas vinícolas da região a partir do ano de
2020 para os vinhos finos, tranquilos e espumantes, em garrafa.
A Indicação Geográfica (IG) foi o resultado de mais de 5 anos
de pesquisa, discussões e estudos de um grupo interdisciplinar coordenados pela
Embrapa Uva e Vinhos do Rio Grande do Sul.
Além disso, os vinhos devem ser elaborados a partir das 36
variedades de vitis viníferas permitidas pelo regulamento, plantadas em sistema
de condução em espaldeira e respeitando os limites máximos de produtividade por
hectare e os padrões de qualidade das frutas que seguirão para a vinificação.
Finalmente, os vinhos precisam ser avaliados e aprovados sensorialmente às
cegas por uma comissão de especialistas.
Esta é uma delimitação localizada no bioma Pampa do estado do
Rio Grande do Sul, região vitivinícola que começou a se fortalecer na década de
1980, ganhando novo impulso nos anos 2000, com o crescimento do número de
produtores de uva e de vinho, expandindo a atividade para diversos municípios
da região.
A área geográfica delimitada totaliza 44.365 km2. A IP
abrange, em todo ou em parte, 14 municípios da região: Aceguá, Alegrete, Bagé,
Barra do Quaraí, Candiota, Dom Pedrito, Hulha Negra, Itaqui, Lavras do Sul,
Maçambará, Quaraí, Rosário do Sul, Santana do Livramento e Uruguaiana.
A Campanha Gaúcha está situada entre os paralelos 29º e 31º
Sul e trata-se de uma zona ensolarada, com as temperaturas mais elevadas e o
menor volume de chuvas entre as regiões produtoras do Sul do Brasil.
Ao mesmo tempo, as parreiras – predominantemente plantadas em
sistema de espaldeira – foram estabelecidas em grandes extensões de planície
(altitude entre 100 e 360 m.) com encostas de baixa declividade, o que favorece
a mecanização das colheitas, reduz os custos e potencializa a escala produtiva.
Uma característica importante é o solo basáltico e arenoso, com boa drenagem,
que somada aos outros fatores propicia a ótima qualidade das uvas.
Esta foi uma conquista para a região, que pode refletir em
uma garantia da qualidade de seus produtos. Fica a torcida para que, após muito
tempo de consistência de qualidade e de uma real identificação da tipicidade, a
Campanha Gaúcha possa ter o reconhecimento de uma Denominação de Origem (DO).
Leia aqui na íntegra o regulamento de uso da IP da Campanha Gaúcha.
A Campanha e o Tannat
A Campanha Gaúcha faz fronteira com o Uruguai e parte da
Argentina. Tão grande é a região que foi dividida em duas. A Campanha oriental,
na fronteira com a Argentina e a Campanha propriamente dita. Região das grandes
fazendas, do gaúcho estilizado, aquele que é conhecido por “Centauro dos Pampas”.
Por falar em pampa esta é uma região pastoril de planícies
com leves ondulações e possui, talvez o melhor pasto do mundo. Espalha-se por
parte da Argentina e todo o Uruguai e certamente dali sai a melhor carne do
mundo.
Mas além das pastagens únicas no mundo a Campanha tem um
clima muito demarcado, pode-se até considerá-lo um clima continental. Muito
frio no inverno e no verão muito sol e calor de dia, a noite refrescando nos
locais mais altos. O solo, muitas vezes rochoso, são ideais para o plantio da
uva.
E da uva para o vinho a Campanha vem produzindo e cultivando grandes cepas para a produção de vinhos e isso não é novidade para ninguém, sobretudo aos apreciadores da bebida que são informados e se interessam pelos detalhes que o circunda. Mas a que se destaca é a Tannat!
Convém destacar que a Campanha está no mesmo paralelo de
grandes produtores mundiais de vinho como Mendoza, Santiago, Cidade do Cabo e
Austrália. O que, dá indícios de boas condições de produção de vinhos de
qualidade, por certo aliado a outros quesitos.
De gata borralheira na França, mais precisamente em Madiran, onde nasceu a Tannat, para atingir o status de rainha no Uruguai onde adaptou-se muito bem. O clima mais ensolarado e quente no verão em comparação com o de Canelones nos arrabaldes de Montevidéu colabora para um Tannat mais frutado e aromático. Menos rústico e rascante como é o tradicional desta casta bastante tânica em sua origem.
E agora
finalmente o vinho!
Na taça revela um rubi intenso, quase escuro, com halos
acastanhados, discretamente atijolados, denotando os seus oito anos de garrafa
ou pelo fato de ter passado por barricas de carvalho ou pelos dois motivos, com
lágrimas finas, lentas e em abundância.
No nariz traz complexidade, porém é elegante e equilibrado,
com as notas frutadas ainda perceptíveis, apesar de uma idade razoavelmente
avançada, frutas negras e vermelhas maduras, com destaque para jabuticaba,
cereja, ameixa preta, morango e framboesa, uma verdadeira geleia de frutas. É
amadeirado e sente-se a baunilha, o couro, tabaco, especiarias, como canela, um
fundo de torrefação, de chocolate.
Na boca entrega também a complexidade, juntamente com o médio
corpo, mas é redondo, macio, afinal o tempo em garrafa lhe foi gentil, com as
notas frutadas em plena sinergia com a madeira, também evidente, os 16 meses em
barricas de carvalho denuncia isso, a madeira é bem calibrada e perceptível,
mas bem integrada. É um vinho volumoso, cheio, alcoólico, tem toques de
mentolado, caramelo, taninos presentes, porém dóceis, domados, com uma acidez
correta e final persistente e retrogosto que lembra café, torrefação.
Aqui vale uma curiosidade sobre o nome do vinho, “Parole di
Famiglia”:
A linha “Parole di Famiglia” foi idealizada em homenagem ao
fundador da Vinícola Don Affonso e tinha como princípio que a palavra dita
valia muito e costumava sempre dizer que “Le parole vale píu que la escrita”,
ou seja: “As palavras valem muito mais que o escrito”. Em sua homenagem a linha
“Parole di Famiglia” enaltece a tradição italiana desde 1870 onde a palavra “Parole”
traz consigo os traços da imigração e os valores de perseverança, força e honra
da família De Gasperín.
André Gasperín, enólogo.
A Campanha Gaúcha se revela gigante, importante para a
vitivinicultura brasileira. O Tannat encontrou o solo ideal para apresentar a
sua tipicidade, a realidade do seu clima, da sua cultura, da sua tipicidade. Um
Tannat frutado, vivaz, de marcante personalidade, equilibrado, taninos
evidentes, mas domados, acidez que aguça a degustação. Um vinho com a cara do
Brasil, com os aspectos mais exemplares e fiéis da Campanha Gaúcha. Grande e
espetacular vinho com uma audaciosa relação qualidade X preço. Tem 13% de teor
alcoólico.
Sobre a Vinícola Don Affonso:
A família Gasperin traz consigo uma história de muito
trabalho e dedicação pelo cultivo da uva, traz no sangue a trajetória de luta e
perseverança, bem como a religiosidade e a valorização dos princípios de vida
ligados a família e ao trabalho na terra. Dessa forma, Affonso Gasperin produzia
seus vinhos para consumo próprio a partir do cultivo das suas uvas e, o
excedente, vendia aos seus amigos.
O vinho era apreciado por todos e assim, a pedido dos seus
amigos e consumidores, Affonso constituiu oficialmente a Vinícola Gasperin, em 13
de julho de 1982. Desde sua fundação teve como princípios fundamentais a busca
pela qualidade dos seus produtos e o cuidado e carinho com a produção de uvas e
elaboração de vinhos, sucos e espumantes.
Hoje dirigida pelo destacado enólogo André Gasperin e equipe
vem ganhando destaque internacional na conquista de premiações em tradicionais
e renomados concursos de vinhos pelo mundo.
Mais informações acesse:
https://www.donaffonso.com.br/
Referências:
“Academia do Vinho”: https://www.academiadovinho.com.br/__mod_regiao.php?reg_num=CAMPANHA
“Vinhos da Campanha”: https://www.vinhosdacampanha.com.br/campanha-gaucha/
“Vinhos da Campanha”: https://www.vinhosdacampanha.com.br/ciclo-de-crescimento-da-uva/
“Tudo do Vinho”: https://tudodovinho.wordpress.com/2020/07/14/i-p-campanha-gaucha/
“Além do Vinho”: https://alemdovinho.wordpress.com/2015/09/20/brasil-campanha-gaucha-melhor-terroir-para-a-tannat/
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