Continuo, a todo vapor, a me aventurar por novas experiências
sensoriais, novas experiências de degustações que, cada vez mais, ampliam o meu
leque de opções. Quando falo disso, e tenho comentado até de forma demasiada
sobre, sempre olho para trás, olho para a minha trajetória de humilde enófilo
que sou e sempre serei e me faço o seguinte comentário: estou em um momento
muito alegre e satisfatório de minha caminhada.
A caminhada de desenvolvimento e que não se enganem, caros
leitores: não é pautada por valores, por status, de quem está degustando
rótulos caros, não é isso. Mas de vinhos cujas regiões, castas e propostas
estão se aperfeiçoando, se diversificando e isso independente de status social
e altos custos com compras de vinhos.
Claro que, admitamos que comprar vinhos no Brasil é uma
aventura difícil, o custo Brasil, as taxas tributárias, a burocracia, impõe um
revés muito grande para nós, apreciadores da poesia líquida, mas tudo é uma
questão de oportunidade, não de demanda ou modismos de compra.
Mas fugindo um pouco desse assunto e falando das gratas
novidades que vem a cada rótulo, surgindo em minha vida, o vinho de hoje foi,
mais uma vez, um presente, uma cortesia do amigo, de São Paulo, Luciano, da
loja Pemarcano Vinhos, que é oriundo da cidade de São Roque, conhecida
carinhosamente pelos seus habitantes, como a “terra do vinho”, e que vem
abrilhantando e inundando as minhas taças com vinhos, diria, no mínimo
surpreendentes, sobretudo pela relação custo X benefício.
E de uma casta que jamais pensei que fosse degustar por estar
associada aos rótulos germânicos tão caros e difícil acesso ao bolso de um
assalariado enófilo brasileiro que é a Riesling. A propósito, será o meu
primeiro Riesling brasileiro!
Vinhos diferentes, leves, frescos, com o DNA do clima
tropical de nossas terras, mas com personalidade que poucas castas brancas
podem oferecer, essa é a Riesling. Então sem mais delongas, vamos apresentar o
vinho! O vinho que degustei e gostei veio, como disse da região paulista de São
Roque, chamado Dom Bernardino Riesling.
Digo de antemão que o vinho é simplesmente surpreendente e
valoriza o frescor, a leveza, a simplicidade sim, mas que entrega as
características mais marcantes da Riesling. Características estas que, antes de
descrever sobre o rótulo, falarei aqui bem como a história brilhante e repleta
de riquezas e tradição de São Roque. Lembrando ainda que a minha experiência
com esses vinhos, da Vinícola Bella Aurora, não é a primeira, pois degustei o
também surpreendente Dom Bernardino Touriga Nacional 2018.
São Roque: “A terra do vinho”
A cidade de São Roque foi fundada no dia 16 de agosto de
1657, mas começou como uma grande fazenda do capitão paulista Pedro Vaz de
Barros, que pertencia a uma família de bandeirantes e sertanistas. Vaz de Barros
também participou de diversas Bandeiras. O fundador da cidade, também conhecido
como Vaz Guaçú, contava com aproximadamente 1.200 índios que trabalhavam em
suas terras, onde eram cultivados trigo e uva. Alguns anos após a morte de Vaz
de Barros, seu irmão, Fernão Paes de Barros, se estabeleceu na mesma região,
onde construiu uma casa e uma capela, que foram restauradas em 1945 pelo
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a pedido do escritor
Mário de Andrade, dono da propriedade.
Na região de São Roque, podem-se identificar referências à
vitivinicultura desde a sua fundação, por volta do final do século XVII.
Conforme informações encontradas e divulgadas pelos moradores da cidade,
através da tradição oral, ou mesmo citado pelo Professor Joaquim Silveira dos
Santos em seu artigo para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, volume XXXVII, nessa época toda a região pertencia a apenas três grandes
proprietários de terras: Pedro Vaz de Barros, seu irmão Fernão Paes de Barros e
o padre Guilherme Pompeu de Almeida, sendo que Pedro Vaz (tido como o fundador
da cidade) se estabeleceu próximo da atual igreja Matriz, seu irmão mais ao
norte, onde até hoje ainda se encontra a casa grande e capela Santo Antônio, e
por fim a fazenda do padre Guilherme Pompeu se encontrava na hoje atual cidade
de Araçariguama que faz divisa com Santana do Parnaíba.
Portanto realmente não se podem esperar grandes referências
desse período da história, afinal o Brasil era apenas uma colônia e que
existiam restrições da fabricação de qualquer tipo de produto em nosso solo, ou
seja, em tese tudo deveria vir de Portugal, inclusive o vinho.
Outro fator que pode ter influenciado e não ter feito
prosperar o cultivo da videira seria a prioridade da época de então, que era a
descoberta de ouro, principalmente na região das Minas Gerais. Sabemos que São
Paulo até então era somente um vilarejo sem grande importância econômica para a
metrópole portuguesa, e se bem analisarmos a história da agricultura brasileira
a uva e o vinho nunca foram tidos como principal interesse por parte de nossos
colonizadores.
Após um período difícil, o povoado originado por Pedro Vaz
foi elevado à categoria de Freguesia no dia 15 de agosto de 1768, recebendo o
nome de São Roque do Carambeí. No dia 10 de julho de 1832, a Freguesia foi
elevada à categoria de vila, mas o progresso do local só começou em 1838,
quando começaram as lavouras de milho, algodão, arroz, mandioca e farinha de
mandioca, cana de açúcar e derivados, legumes e verduras. Em março de 1846,
seis anos após instalar-se na vila o destacamento da Guarda Nacional, Dom Pedro
II e uma pequena comitiva permaneceram um dia na cidade de São Roque. Com a
passagem de Dom Pedro II, Antonio Joaquim começou a se destacar no cenário
político e, graças ao morador ilustre, São Roque foi elevada à categoria de cidade
no dia 22 de abril de 1864.
Após esse longo período de estagnação, o primeiro registro
oficial de plantação de uvas na região de São Roque se dá por volta de 1865,
quando o Doutor Eusébio Stevaux inicia uma pequena plantação na sua fazenda em
Pantojo. Pela mesma época, um colono italiano adquire uma pequena propriedade
no bairro de Setúbal, alguns anos mais tarde um português na terra do então
Sítio Samambaia forma um razoável vinhedo e inicia o processo de fabricação do
vinho.
Já em 1875 foi inaugurada a Estrada de Ferro Sorocabana, que
ligou a cidade de São Paulo a São Roque e Sorocaba. Após alguns anos, em 1884,
começou a grande chegada de imigrantes à cidade, fazendo com que as vinícolas
aparecessem novamente e ganhassem força nos anos seguintes. Em 1924, a cidade
já contava com 17.300 habitantes e foram produzidos 10 mil litros de vinho a
cada ano, tendo doze produtores de vinhos, sendo cinco deles italianos.
O que possibilitou o retorno da cultura da uva e fabricação
do vinho foi a importação de videiras oriundas dos Estados Unidos, pois estas
eram mais resistentes ao clima brasileiro. Dentre as principais videiras
trazidas estão inicialmente a “Izabel”, a “Seibel 2” (importada da França),
curiosamente trazida por imigrantes italianos que se instalaram na região e
posteriormente a “Niágara Branca”, oriunda da região do Alabama, EUA.
Portanto, a divisão do período da cultura vinícola de São Roque,
desde a fundação da cidade até a época atual em quatro fases distintas:
1ª fase: 1657 – 1880: importação de videiras portuguesas,
plantações domiciliares, sem qualquer cunho comercial, ou seja, somente para
consumo próprio.
2ª fase: 1880 – 1900: Retomada da viticultura são-roquense, ainda que amadora, quase que familiar, continua voltada basicamente para o consumo e pequeno varejo. Já apresenta uma tendência a profissionalização graças às técnicas trazidas pelos imigrantes italianos e portugueses. Já se utiliza da videira americana que melhor se adaptou ao clima tropical brasileiro (talvez seja este um dos principais fatores de sucesso do cultivo da uva na região de São Roque);
3ª fase 1900 – até aproximadamente final da década de 1950:
processo de industrialização e profissionalização da produção do vinho com
aplicações de técnicas mais modernas permitindo assim obter resultados e
desempenho melhores.
Podemos dividir esta fase primeiramente num período de início
do processo de profissionalização e logo após (a partir da década de 1920), o
período em que realmente a região investiu e desenvolveu as técnicas
vinicultoras, durando até aproximadamente a década de 1950, onde após a
massificação da produção entra num processo de decadência.
4ª fase década de 1960 – atual: esta fase engloba o processo
de decadência da viticultura são-roquense. Por motivos econômicos e climáticos
e até mesmo por falta de investimentos em pesquisas, que se reduziram
sensivelmente tanto a qualidade como a quantidade de vinho produzido, levando
ao fechamento de diversas adegas (isso principalmente a partir da década de
1980). São Roque permanecendo hoje somente com o título de “terra do vinho”,
sendo que os poucos fabricantes que restaram (aproximadamente treze adegas)
fabricam seu vinho não de uvas nativas de São Roque, mas sim oriundas de outras
partes do Estado ou mesmo de outros estados (exemplo: Rio Grande do Sul).
Há atualmente um movimento para tentar a reversão dessa
situação, porém continua bem modesto em relação a todo o histórico e números do
passado no ápice do cultivo da videira em São Roque.
Riesling
A casta Riesling é uma das grandes uvas brancas da Alemanha e
uma das melhores variedades do mundo todo, capaz de conferir ao vinho incrível
elegância e complexidade e uma habilidade inigualável de expressar o terroir.
Seus cachos apresentam coloração verde amarelada com tamanho
médio e delicado. Os vinhos elaborados com a casta costumam ter acidez bastante
destacada e são extremamente aromáticos. Os melhores brancos da casta costumam
ser os varietais. A uva Riesling possui duas variações, sendo a Renana a de
maior qualidade e a Itálica a que possui menor grau de expressividade.
Com textura bastante envolvente, os vinhos elaborados a
partir da casta Riesling podem ser secos, meio doces ou bem doces. O que é de
conhecimento sobre o cultivo da uva, é que para originar os maravilhosos e
extraordinários vinhos de sobremesa, ocorrem dois processos bastante distintos.
O primeiro processo é o ato de congelar a uva antes da
colheita, sendo conhecido como “eiswen” – ou vinhos de gelo. Nele a casta
Riesling permanece vários dias congeladas (enquanto madura), ainda no vinhedo,
por conta das baixas temperaturas em que fica exposta. Logo após serem colhidas,
as uvas passam pelo processo de prensagem, tornando o vinho muito mais
concentrado, já que haverá menor quantidade de água. Nesse caso os melhores
exemplares são encontrados no Canadá, graças ao seu clima frio e com bastante
presença de geadas.
O outro processo é quando ocorre a podridão nobre, momento em
que o fungo “Botrytis Cinerea” fura a casca da uva e alimenta-se da água da
casta, deixando-a desidratada e exaltando os açúcares presentes na sua
composição. As uvas são colhidas e levadas para vinificação, tornando o vinho
muito mais especial.
Alguns produtores estampam “dry” (seco) ou “sweet” (doce),
mas isso não é suficiente perto dos tantos níveis de doçura da Riesling. Ela
pode ser “medium dry” (vinho meio seco), “medium sweet” (meio doce) e por aí vai.
A forma de identificar essas propostas de vinhos Riesling é
verificar a graduação alcoólica – quanto menor for mais doce será. Isso
acontece porque durante a fermentação, o açúcar natural da uva vira álcool (se
a conversão não acontece, permanece doce e menos alcoólico). Qualquer Riesling
com mais de 11% é seco, pois quase todo seu açúcar foi transformado em álcool.
Por possuir presença de açúcar residual e tempos de guarda
diferentes, os vinhos elaborados com a casta Riesling possuem maior atenção na
hora da harmonização, sendo na maioria das vezes melhores quando degustados e
apreciados sem a companhia de pratos.
Seus vinhos podem ser sublimes e costumam durar muito tempo.
Além da Alemanha, também produz vinhos excelentes na Áustria, Alsácia e também
em alguns países do Novo Mundo, como Nova Zelândia, África do Sul e Austrália.
E agora finalmente o vinho!
Na taça entrega um lindo e brilhante amarelo palha,
translúcido, com reflexos esverdeados.
No nariz explodem os aromas de frutas brancas frescas e
cítricas, onde se destaca pera, maçã-verde, pêssego, abacaxi, limão, com notas
minerais que traz a sensação de leveza e frescor.
Na boca seguem as percepções frutadas, como observado no
aspecto olfativo, trazendo também a leveza e a refrescância que o torna
despretensioso e informal, além de uma ótima acidez que saliva e um final
prolongado e frutado.
Vinho não é só poesia engarrafada como dizia aquele poeta,
mas história engarrafada também. Degustamos história, degustamos cultura! É
muito gratificante e especial degustarmos vinhos com essa carga histórica
atrelada de forma tão veemente, tão latente. A história é viva e plena, não é
algo estático. Degustar o Dom Bernardino Riesling é como se estabelecêssemos
contato com um novo mundo, uma nova percepção, que enaltece as nossas
experiências sensoriais. Um vinho que apesar de ter as tradições lusitanas,
tanto que o nome “Dom Bernardino” é em homenagem ao fundador da vinícola Bernardino
Pereira Leite, português que se estabeleceu em São Roque, graças às raízes que
criaram a vinícola, tem o terroir brasileiro, o fazer brasileiro, a nossa
cultura, a nossa assinatura. Dom Bernardino Riesling é jovem, fresco, leve,
despretensioso e que harmonizou perfeitamente com um meio de tarde outonal. Que
venham mais e mais momentos especiais como esse! Como curiosidade: as uvas
vieram de Caxias do Sul e foram, claro, vinificadas pela Bella Aurora. Tem 11%
de teor alcoólico.
Sobre a Vinícola Bella Aurora:
Vinícola fundada na década de 1920 por Bernardino Pereira
Leite imigrante português iniciou sua produção para consumo caseiro. A produção
em escala comercial teve início em 1932.
Com mais de 85 anos, Vinhos Bella Aurora mantém sua tradição
familiar na produção de saborosos vinhos, contando com uma excelente estrutura
de atendimento aos visitantes e uma equipe de representantes comercial em todo
estado de São Paulo.
A Vinícola proporciona um passeio turístico para quem busca
contato com a natureza. Neste passeio poderá degustar bons vinhos e sucos, além
de poder adquirir toda a linha de produtos típicos da Vinícola Bella Aurora.
Para melhor atender os clientes, a cantina dos Vinhos Bella Aurora foi montada
no interior de um autêntico tonel de madeira com capacidade para 120 mil
litros.
Mais informações acesse:
https://www.bellaaurora.com.br/
Referências:
“Assembleia Legislativa de São Paulo”: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=301135
“Blog do Lullão”: http://www.lullao.com/p/historia-do-vinho-em-sao-roque.html?m=1
“Sites
Google”: https://sites.google.com/site/historiadovinhodesaoroque/home/historia-do-vinho-de-sao-roque
“Blog Sonoma”: https://blog.sonoma.com.br/como-escolher-um-riesling/amp/
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