Diz o ditado popular que “o raio não cai mais de uma vez em
outro lugar”. Pois bem, no universo do vinho essa frase, a meu ver, não tem
muita validade ou pelo menos não deveria ter, diria pelo menos em doses
“homeopáticas” e seguras.
Eu explico esse conjunto de charadas: por que não podemos
repetir a degustação de um rótulo, de um rótulo que gostamos que marcasse a
nossa vida? Podemos fazer melhor: Acompanhar a evolução de um vinho degustando
safra por safra e exercitar a nossa capacidade de análise sensorial e reforçar,
ou não, a nossa predileção, o nosso carinho por aquela linha de rótulos ou
aquele produtor, nos estimulando a buscar novos vinhos, outras propostas dessa
vinícola.
Ah e quando falei das doses “homeopáticas” e seguras é não
fazer dessa predileção uma temível zona de conforto, isto é, nos render aos
mesmos vinhos, da mesma região, do mesmo produtor, das mesmas castas etc.
Então sem mais delongas o vinho que degustei e gostei é da
Bairrada, Portugal, e se chama Marquês de Marialva Colheita Seleccionada da
safra 2018 e tem o blend de castas tipicamente regionais, são elas: Bical
(40%), Maria-Gomes (40%) e a mais famosa de Portugal, Arinto (20%). O que eu
degustei da mesma linha de rótulos foi o Marquês de Marialva Colheita Seleccionada, mas da safra 2016.
Então, antes de falar do vinho, contemos um pouco da história
da Bairrada e das regionais castas, as menos conhecidas, Bical e Maria-Gomes.
Bairrada
Localizada na região central de Portugal e se estendendo até
o Oceano Atlântico, especificamente entre as cidades de Coimbra e Águeda, a
região vinícola da Bairrada – cujo nome é uma referência ao solo argiloso que a
compõe – tem clima temperado bastante favorável às vinhas. A Bairrada é uma
daquelas regiões portuguesas com grande personalidade. Apesar de sua longa
história vínica, a certificação da região é recente. A Denominação de Origem
Controlada (DOC Bairrada) para vinhos tintos e brancos é de 1979 e para
espumantes de 1991. A Região Demarcada da Bairrada possui também uma Indicação
Geográfica: IG Beira Atlântico.
António Augusto de Aguiar estudou os sistemas de produção de
vinhos e definiu as fronteiras da região. Em 1867, vinte anos mais tarde,
fundou a Escola Prática de Viticultura da Bairrada. Destinada a promover os
vinhos da região e melhorar as técnicas de cultivo e produção de vinho.
O primeiro resultado prático da escola foi a criação de vinho espumante em 1890. E foi com os espumantes que a região conquistou o mundo. Frutados, com um toque mineral e boa estrutura esses vinhos tornaram-se referencias e, até hoje, fazem da Bairrada uma das maiores regiões produtoras de espumantes de Portugal. Com o passar do tempo, as criações tintas ganharam espaço.
Muito por conta do que os produtores têm feito com a Baga,
casta autóctone da região. O grande responsável pelo fortalecimento
internacional da região é o engenheiro Luís Pato. Conhecido como o Mr. Baga,
Pato tem um trabalho minucioso sobre as uvas, tudo para conseguir um vinho
autêntico com o mínimo de interferência externa. A uva Baga, uma das principais
uvas nativas de Portugal, é capaz de oferecer enorme complexidade aos rótulos
que compõe.
Demonstrando muita classe e estrutura, a variedade da casta
de tintos é única no seu valor e possui um fantástico potencial de
envelhecimento, que atua com o vinho na garrafa durante anos após sua
fabricação. Além de refinados e inimitáveis, os vinhos produzidos com esta
variedade de uva apresentam muita personalidade e distinção. No passado, a Baga
era conhecida por ser empregada na produção de vinhos rústicos, excessivamente
ácidos e tânicos e de pouca concentração. Porém, após a chegada do genial Luís
Pato, conhecido como o “revolucionário da Bairrada” e maior expoente desta
variedade, a casta da uva Baga foi “domesticada”.
A localização da DOC Bairrada e suas características de clima
e solo fazem dela uma região única. Paralelamente, o plantio das vinhas é feito
em lotes descontínuos de pequenas proporções e faz divisa com outras culturas e
outros usos de solo. Com isso, seus vinhos são de terroir, ou seja, o local
onde a uva é plantada influencia diretamente em suas particularidades.
Delimitada a Sul, pelo rio Mondego, a Norte pelo rio Vouga, a Leste pelo oceano
Atlântico e a Oeste pelas serras do Buçaco e Caramulo, a região é composta por
planalto de baixa altitude.
O solo é predominantemente argilo-calcário, mas há algumas poucas regiões com solos arenosos e de aluvião. O clima é mediterrânico moderado pelo Atlântico. A região recebe forte influência marítima do oceano Atlântico. Os invernos são frescos, longos e chuvosos e os verões são quentes, suavizados pela presença de ventos frequentes nas regiões junto ao mar. A área se beneficia de grande amplitude térmica na época do amadurecimento das uvas. A variação que pode chegar aos 20ºC de diferença entre o dia e a noite.
O Decreto-Lei n.º 70/91 estabeleceu as castas autorizadas e
recomendadas para produção de vinhos na DOC Bairrada. A lei descreve as
diretrizes para elaboração dos vinhos tintos, rosés, brancos e espumantes. Para
a produção de tintos e rosés com o selo DOC Bairrada, as castas recomendadas
são Baga (ou Tinta Poeirinha), Castelão, Moreto e Tinta-Pinheira. No conjunto ou
separadamente, deverão representar 80% do vinhedo, não podendo a casta Baga
representar menos de 50%. As castas autorizadas são Água-Santa, Alfrocheiro,
Bastardo, Jaen, Preto-Mortágua e Trincadeira.
Para os vinhos brancos as castas recomendadas são Maria-Gomes (também conhecida como Fernão Pires), Arinto, Bical, Cercial e Rabo-de-Ovelha, no conjunto ou separadamente com um mínimo de 80% do encepamento: e as autorizadas são Cercialinho e Chardonnay. O vinho base para espumantes naturais devem ser elaborados através das castas recomendadas Arinto, Baga, Bical, Cercial, Maria-Gomes e Rabo-de-Ovelha; ou das autorizadas Água-Santa, Alfrocheiro-Preto, Bastardo, Castelão, Cercialinho, Chardonnay, Jean, Moreto, Preto-Mortágua, Tinta-Pinheira e Trincadeira.
Em 2012 foi publicada a Portaria n.º 380/2012, que atualiza a
lista de castas permitidas para elaboração dos vinhos DOC Bairrada. Foi incluída recentemente uma autorização
para o cultivo das castas internacionais Cabernet Sauvignon, Syrah, Merlot,
Petit Verdot e Pinot Noir e das portuguesas Touriga Nacional, Castelão, Rufete,
Camarate, Tinta Barroca, Tinto Cão e Touriga Franca. Vinhos elaborados com
castas que não estejam relacionadas no Decreto-Lei, não podem receber o selo de
DOC Bairrada e são rotulados com o selo Vinho Regional Beira Atlântico.
Maria-Gomes
Maria Gomes é uma variedade de pele clara conhecida
popularmente como uva Fernão Pires. Trata-se de uma variedade aromática e
cultivada, principalmente, em Portugal. A versátil uva Maria Gomes é utilizada
na elaboração de vinhos brancos secos e serve de base também para vinhos de
sobremesa e bons espumantes.
Lima, laranja e raspas de limão são os três aromas mais
comuns encontrados nos vinhos Maria Gomes. Em alguns casos, os vinhos
apresentam também sabores de mel e bem minerais, com o decorrer do tempo em que
vão envelhecendo.
As vinhas da Maria Gomes se adaptam melhor quando são cultivadas em regiões com temperaturas elevadas, principalmente, nas áreas centrais e no sul de Portugal – Bairrada, Lisboa e Ribatejo. Os altos rendimentos dessa variedade necessitam ser controlados pelo produtor, a fim de que seus frutos apresentem complexos aromas e sabores. Além disso, as videiras da Maria Gomes são sensíveis a geadas, sendo inadequada para o cultivo em regiões frias.
A maior parte dos vinhos produzidos a partir da Maria Gomes
apresenta excelente complexidade aromática, embora ocorram algumas complicações
por parte dos produtores, precisando que alguns cuidados sejam tomados durante
a vinificação para que seja produzido um bom vinho.
Os níveis de acidez da uva Maria Gomes podem diminuir
consideravelmente no final do crescimento, dando origem a vinhos pouco
complexos e “flácidos”, com tendência a serem simples. Apenas os melhores
exemplares podem envelhecer por alguns anos na garrafa.
Na maior parte das vezes, os vinhos de Portugal são
combinações de duas ou mais uvas, e os vinhos produzidos com a uva Maria Gomes
não são exceção. A casta aparece nos rótulos dos exemplares, normalmente, ao
lado de outras cepas nativas de Portugal, como a Arinto.
Bical
A Bical é uma uva branca de origem portuguesa utilizada na
elaboração de vinhos brancos e espumantes. Cultivada principalmente na região
de Beiras, especialmente na Bairrada e no Dão, no centro de Portugal, produz
vinhos de elevada acidez, podendo ser aproveitada em blends ou em vinhos
varietais.
É caracterizada por sabor frutado e pode apresentar, em anos
mais maduros, notas de frutas tropicais. Trata-se de uma casta precoce com
elevado teor alcoólico, que apresenta alta resistência à podridão, mas tem como
peculiaridade a alta sensibilidade ao oídio.
Também conhecida como Arinto de Alcobaça, Bical de Bairrada,
Pintado dos Pardais ou Pintado das Moscas, Barrado das Moscas e Borrado das
Moscas, devido à sua aparência nos vinhedos, a uva Bical é, junto com a uva
Maria Gomes, é uma das castas mais importantes desta região portuguesa da
Bairrada.
Os vinhos elaborados com a casta Bical são bastante macios e
muito aromáticos, frescos e de boa estrutura. Respondem muito bem ao
envelhecimento em carvalho e ao contato estendido com as borras, resultando em
ótimos vinhos. Os melhores exemplares podem maturar por mais de dez anos,
adquirindo características próximas a vinhos elaborados com a Riesling. Esta
uva também é bastante utilizada em espumantes, muitas vezes misturada com as
castas Arinto e Cercial.
Uva bastante precoce, a Bical possui amadurecimento rápido
nos vinhedos e pode desenvolver alto teor alcoólico, principalmente se for
deixada na videira por um longo período. Quando apresenta acidez acima da
média, é utilizada na elaboração de espumantes ou em vinhos de corte com a
Arinto.
Na região do Dão ela é conhecida como Borrado das Moscas, pois as uvas maduras nos vinhedos apresentam pequenas manchas castanhas, que lembram muito o desenho de moscas, mas que são apenas sardas na parte externa da fruta. Esta característica faz com que se tenha a impressão de as uvas estarem levemente irregulares.
O consumo dos vinhos elaborados com a uva Bical é indicado em
refeições que incluam pratos com peixes e frutos do mar, tais como mariscos com
arroz, mexilhões cozidos, peixe branco grelhado com risoto, ou mesmo frango
Apricot, entre muitas outras opções.
E agora finalmente o vinho!
Na taça apresenta um amarelo palha, com tendência para o
dourado muito brilhante com a manifestação de lágrimas finas e curtas.
No nariz traz uma explosão aromática de frutas brancas, como
maçã verde, pera e frutas cítricas como limão, lima e abacaxi, com um delicado
floral, flores brancas.
Na boca é fresco, leve, redondo, mas entrega um bom volume de
boca, sendo, em alguns momentos, um vinho untuoso, com uma acidez equilibrada e
um final prolongado e marcante.
Um raio cai sim e deve, no mundo dos vinhos, duas vezes ou mais nas nossas taças e fazendo um reboliço nas nossas experiências sensoriais, iluminando os nossos dias com ótimas degustações, transformando-os em verdadeiras celebrações, uma verdadeira ode aos vinhos dessa região emblemática de Portugal que não faz tanto sucesso em terras brasileiras: a Bairrada! Espero acompanhar, seguir junto com a linha Marquês de Marialva Colheita Seleccionada, com seus rótulos brancos, safra após safra, desvendando nuances sensoriais que personificam na mais genuína qualidade que catapulta para o mundo a Bairrada e suas castas de forte apelo regionalista! Que venham mais e mais rótulos! Que os anos não passem em termos de qualidade e que retrate a tipicidade dessa região. Tem 12,5% de teor alcoólico.
Ah aqui cabe uma curiosidade sobre o nome do rótulo:
D. António Luís de Meneses, natural de Cantanhede, foi o 1º
Marquês de Marialva, título que recebeu de D. Afonso VI, em reconhecimento da
sua valentia ao comando das tropas portuguesas nas batalhas de "Linhas de
Elvas" e "Montes Claros" - as mais importantes durante a Guerra
da Restauração (1640-1668), quando Portugal recuperou definitivamente a sua
independência, após 60 anos de domínio espanhol. Pode-se dizer que a ele se
deve o fato de Portugal existir hoje como uma nação independente.
Sobre a Adega Cooperativa de Cantanhede:
A constituição da Adega Cooperativa de Cantanhede acontece no
ano de 1954, fruto da vontade de um grupo de viticultores empenhado em criar
condições para valorizar e rentabilizar o elevado potencial que já então
reconheciam aos vinhos produzidos no terroir de Cantanhede.
Neste concelho, onde a viticultura remonta ao tempo dos
romanos, encontramos a principal mancha vitícola da Região Demarcada da
Bairrada. Atualmente com cerca de 1400 viticultores associados, representando
uma área total de vinha de 2000 Ha, esta adega é o maior produtor da região,
representado 25 a 30% da produção.
A sua dimensão e consequente responsabilidade que assume no
contexto da região demarcada onde se insere, desde cedo exigiu que o caminho a
seguir fosse o de valorizar as castas características da região, apostando na
produção de vinhos com maior qualidade.
Inicialmente comercializados exclusivamente a granel, após
apenas 9 anos depois da sua fundação e contra todas as correntes do sector
cooperativo de então, esta adega inicia, pioneiramente, a venda dos seus vinhos
engarrafados procurando uma alternativa para a diferenciação dos vinhos de
Cantanhede.
A estratégia adoptada não demorou a dar frutos. Hoje esta
adega certifica mais de metade da sua produção com a Denominação de Origem
Bairrada, assumindo uma destacada liderança neste segmento e, mais recentemente
também nos Vinhos Regional Beiras. Hoje a sua política produtiva assenta num
pressuposto basilar que passa por uma forte aposta nas castas portuguesas,
particularmente da Bairrada, sua defesa, promoção e divulgação.
Mais informações acesse:
Referências:
Mistral: https://www.mistral.com.br/regiao/bairrada
“Mistral”: https://www.mistral.com.br/tipo-de-uva/maria-gomes