Mais um daqueles dias especiais de degustação que, mesmo
previamente, já decretei especial. Explico: pelo simples fato de ser mais um
vinho com safras especiais, aqueles vinhos com alguns anos de vida e que tem me
atraído de uma forma diria arrebatadora, progressiva.
Mesmo que eu ainda não tenha aquela experiência sensorial,
uma capacidade enorme para identificar alguns aromas, sabores e
características, parece que a simbiose com esses rótulos são tão longevas
quanto o tempo desses de safra. Uma espécie de duradoura relação, mesmo que
seja por pouco tempo, sobretudo no quesito quantitativo.
Mas mesmo que a minha experiência ainda não seja a suficiente
para o entendimento e interpretação na análise desses vinhos, tenho me esmerado
na escolha e compra de rótulos com essa proposta, tão difícil nos dias de hoje,
haja vista que o mercado está mais preparado para os vinhos frutados, ligeiros,
jovens.
Sempre me pego olhando, admirando a adega, já sitiada por
vinhos com mais de dez anos de vida, de garrafa, evoluindo, vagarosamente,
melhorando, afinando, a cada dia, a cada minuto, para nosso deleite. São vinhos
especiais, singulares, sem dúvida alguma.
E os vinhos espanhóis têm recheados grandemente a minha
adega, os vinhos reserva, crianza, gran reserva. O rigor da legislação
espanhola para que estes vinhos ostentem esses “títulos”, o terroir enaltecido
pelos produtores, o apelo regionalista, tudo conspira para vinhos especiais,
imponentes e delicados, ao mesmo tempo.
E o rótulo de hoje personifica todas essas percepções e está,
já que falei em adega, há pelo menos 2 anos evoluindo na adega, quase 9 anos de
safra, 8 anos para ser exato, esperando o explodir da rolha e inundar a minha
simples taça. Sem mais delongas vamos ao nome: o vinho que degustei e gostei
veio de uma região ainda pouco conhecida por aqui, Utiel-Requena, na Espanha e
se chama Valtier Reserva da safra 2013, com um corte bem interessante de Bobal
(50%) e Tempranillo (50%).
E já que falei do blend inusitado, haja vista que a Bobal
ainda é uma casta não muito conhecida entre nós, brasileiros, mas muito famosa
e importante em Utiel-Requena, e a mais famosa da Espanha no mundo inteiro,
Tempranillo, convém falar um pouco desta região e da sua relação com a nossa
Bobal, que também merece algumas linhas a seu respeito.
Utiel-Requena
A Espanha possui a maior área cultivada de Vitis Vinifera do
mundo, embora em volume de produção ocupe somente a terceira posição. Trata-se
de um amplo território o qual nos presenteia, ano após ano, com vinhos
exuberantes e geralmente de bastante personalidade: o emblemático Jerez
fortificado da Andaluzia, tintos de Rioja, Priorat e Ribera Del Duero, brancos
de Rueda, entre outros. É natural que, entre as 13 macrorregiões a qual está
dividida, existam sub-regiões as quais permaneçam relativamente ocultas do
grande público, mesmo daquele consumidor habitual de vinhos. Algumas preferem
manter o “anonimato”, dedicando sua produção ao consumo regional; outras,
porém, dedicam esforços incansáveis no sentido de promover seu terroir, suas
cepas endêmicas, a tipicidade de seus vinhos e as melhorias em seu processo
produtivo. Este é o caso de Utiel-Requena.
Recentemente, foram descobertos registros arqueológicos que
comprovam que, desde o século V a.C., era praticada a vitivinicultura na região
de Utiel-Requena. Sítios arqueológicos como El Molón, em Camporrobles, Las
Pilillas, em Requena e Kelin, em Caudete atestam o passado vinícola da região.
Quando do domínio romano sobre a região, estes introduziram novas técnicas de
vinificação, propiciando a melhora dos vinhos ali produzidos. Utiel-Requena têm
sua história também ligada ao período conhecido como Reconquista: a retomada, a
partir do século VIII, do controle europeu dos territórios da Península
Ibérica, dominados pelos árabes (mouros) desde o século VI.
Muitas das cidades da região foram fundadas e/ou possuem
grande influência islâmica em suas construções, bem como vestígios de
fortalezas e construções mouras, como a cidade de Chera, por exemplo. Em 1238,
a região cai sob o domínio do reino de Castela. No século seguinte, após
conflitos envolvendo este reino e seu vizinho, Aragão, ocorre a união entre a
rainha Isabel (Castela) e Fernando (Aragão), conhecidos como os Reis Católicos,
e, após a conquista dos demais reinos ibéricos por estes (exceto Portugal),
constitui-se o Reino da Espanha.
Utiel-Requena, consequentemente, torna-se domínio espanhol.
Durante o século XIX, eclodem na Espanha as Guerras Carlistas, que dividem a
população espanhola entre os partidários do absolutismo e do liberalismo;
reflexo de outras manifestações do mesmo cunho ocorridas Europa afora. Utiel
(absolutista) e Requena (liberal), assim como as demais cidades da região,
assumem posições antagônicas, situação somente resolvida com a conclusão da
Primeira Guerra Carlista.
Utiel-Requena localiza-se na porção leste do território
espanhol, dentro da província de Valencia. Situa-se numa zona de transição
entre a costa mediterrânea e os platôs da região da Mancha. Seus vinhedos
localizam-se predominantemente entre os rios Turia e Cabriel. A região possui
um dos climas mais severos de toda a Espanha. Os verões costumam ser longos e
quentes (máximas por vezes de 40 graus), enquanto os invernos são muito frios,
com ocorrência frequente de geadas e granizo (mínimas podem chegar a -10
graus).
No entanto, as vinhas encontram-se adaptadas a tais rigores e
oscilações e, como atenuante, sopra do Mar Mediterrâneo o Solano, vento frio
que ajuda a suavizar o efeito dos quentes verões da região. O solo possui cor
escura, de natureza calcária e pobre em matéria orgânica. Utiel-Requena é uma
DOP (Denominación de Origen Protegida – Denominação de Origem Protegida)
pertencente a Comunidade Valenciana, a qual possui certa autonomia em relação
ao governo central espanhol. Não possui sub-regiões.
Bobal
As primeiras notícias da Bobal datam do século XIV. Da costa
de Valência, esta uva estabeleceu-se com sucesso em outras regiões do interior
da Espanha. Lugares como Utiel-Requena, Ribera e Manchuela, todas Denominação
de Origem Controlada, tem a Bobal como uma das suas principais variedades,
chegando seu cultivo ser quase que majoritário.
A Bobal é pouco cultivada fora da Espanha, há plantações dela
nas regiões de Languedoc-Roussillon, no sul da França, e da Sardenha, na
Itália. Dentro dessas regiões é também conhecida por requena, espagnol,
benicarlo, provechón, valenciana, carignan d’espagne, balau, requenera,
requeno, valenciana tinta ou bobos. Seu nome é derivado da palavra latina
Bovale, que significa touro, e refere-se à semelhança que os seus cachos têm
com a cabeça de um touro.
É uma uva de porte médio para grande, com bagos redondos e
cheios de sumo; além disso, apresentam quantidade razoável de taninos e sabores
de chocolate e frutos secos. Seus cachos, por sua vez, são muito grandes, bem
compactados e pesados.
Dá-se muito bem com climas mediterrâneos. Elabora diferentes
tipos de vinhos, com especial destaque para os vinhos rosés, sempre jovens, com
muita cor e com boa acidez; a Bobal ainda é responsável pelos aromas frutados
destas bebidas. Os tintos desta uva são pouco alcoólicos, mas muito saborosos,
vinhos de coloração cereja escura profunda e boa estrutura de taninos.
Por sua versatilidade e acidez adequada, a Bobal pode ainda
ser ainda utilizada para produzir espumantes. As peles grossas de Bobal têm uma
elevada quantidade de uma substância que dá cor intensa aos vinhos, bem como
presenteia a bebida com uma presença importante de taninos finos, esse é um dos
motivos que tem dado a esta uva um destaque especial na produção espanhola,
principalmente na região de Manchuela, cujo status de Denominação de Origem deu
respaldo ao cultivo da Bobal e aos os vinhos elaborados com ela frente ao
mercado interno e externo.
E agora finalmente o vinho!
Na taça revela um vermelho rubi intenso, mas com reflexos
violáceos que traz vivacidade e beleza, com lágrimas finas e em abundância que
desenham as bordas do copo.
No nariz ainda nos entrega frutas negras, apesar dos seus 8
anos de safra, tais como ameixa, amora, groselha preta, com notas amadeiradas,
toques de café e tostado, além de especiarias, onde se destaca pimenta e o tabaco.
Na boca é seco, cheio, alcoólico, estruturado, encorpado, mas
equilibrado, redondo, afinal o tempo lhe concedeu elegância, bem como os 24
meses em que passou por barricas de carvalho, afinando, porém entregando também
as características do aporte da madeira, como baunilha, os toques amadeirados
em perfeita sinergia com as frutas negras, taninos presentes, mas que foram “arredondando”
ao longo da degustação, mostrando uma incrível capacidade de evolução em taça,
com acidez discreta e final de média persistência.
Tantos pré-requisitos que credenciam este rótulo, este vinho
complexo, estruturado, mas com uma estrutura delicada, uma textura elegante. O
tempo diz tudo, o tempo é o maior amigo para vinhos com essa proposta e nos
entrega o que há de melhor na sua qualidade. Um vinho gastronômico, versátil,
equilibrado, pois mesmo que no auge da sua complexidade, principalmente no
quesito aromático, ele nos proporciona um vinho macio, com taninos amáveis e
uma acidez que ainda está presente, mostrando vivacidade e plenitude, podendo
inclusive ser guardado por muito e muito tempo. Vinhas velhas com mais de 40
anos, complexidade, longevidade, vivacidade, são palavras que definem um
conceito que, a cada dia, nos mostra o quão especial os vinhos longevos podem
nos entregar. Tem 13% de teor alcoólico.
Sobre a Hacienda y Viñedos Marqués del Atrio:
A família Rivero está de fato relacionada ao mundo do vinho
há mais de um século. Nos anos 40, Amador Rivero, pai dos atuais proprietários,
Agapito e Jesús Rivero, começou então a cultivar videiras e a produzir vinho
profissionalmente em sua vinícola Faustino Rivero Ulecia, em Arnedo (na região
de La Rioja).
Em 2003, a Família Rivero decidiu construir uma nova
vinícola, Hacienda y Viñedos Marqués del Atrio, S.L., pois o aumento da
vinícola em Arnedo não era possível e a oferta de uvas na área era limitada.
A família escolheu a região de Mendavia, no vale do Ebro,
porque garante uma qualidade suprema das uvas, necessária para atender às
exigências do mercado.
A Rivero Family não vende apenas vinhos com a DOCa Rioja, mas
em 1988 começou a vender vinho engarrafado com DO Navarra produzido em Corella
(em Navarra) e em 1997 vinhos com DO Utiel-Requena produzido em Requena (em
Valência).
Em 2001, pretendendo atender à demanda de vinhos varietais
únicos e de consumo diário, a vinícola começou, portanto a vender vinhos
regionais. Em 2007, foi dado outro passo e a venda de Cava foi iniciada,
aproveitando dessa forma a oportunidade de expansão na indústria do vinho.
Mais informações acesse:
https://grupomarquesdelatrio.com/en/
Referências:
Site “Clube dos Vinhos”: https://www.clubedosvinhos.com.br/os-prazeres-da-uva-bobal/
Blog “O Mundo e o Vinho”: http://omundoeovinho.blogspot.com/2015/11/utiel-requena.html
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