Nessas minhas andanças na estrada do vinho eu já degustei
muitos rótulos! Viajei, por intermédios das taças cheias da poesia líquida, por
regiões, países, histórias, naveguei por muitas culturas e comportamentos que
impactaram nas tipicidades de muitos vinhos, mas para alguns rótulos em
especial eu sempre mantive uma postura de distanciamento, algo intransponível,
difícil de ter em minha mesa, em minha taça.
Claro que em algum momento de nossa vida podemos ter a
alegria de degustar aquele vinho caro, de uma região que sempre quis ter em
nossa taça, aquela proposta de vinho raro, difícil de encontrar por aí. Talvez
seja um pessimismo da minha parte dizer que um vinho seja inalcançável para
mim, mas a impressão é essa para mim, quando olho alguns rótulos e um exemplo
eram os vinhos artesanais.
Sempre vi alguns especialistas eufóricos falar dos vinhos
artesanais, caseiros mesmo, naturais, biodinâmicos, entre outros e eu sempre
pensei: Nossa nunca terei acesso a esses vinhos, parece ser difícil
encontra-los, de tê-los em minha adega, devem ser caros demais!
Como deve ser bom degustar um vinho de pequeno produtor, que
produz vinhos em baixa escala. Que legal deve ser valorizar os pequenos
produtores que ajudam e muito a alavancar a nossa cultura vitivinífera e que
geralmente são esses pequenos produtores, esses produtores de vinhos artesanais
que personificam a história vinífera do Brasil com os imigrantes italianos e
portugueses, que são os pilares, o sustentáculo de nossa ainda nova indústria
do vinho.
E o rótulo, especial, de hoje é um vinho artesanal que
descobri da forma mais despretensiosa do mundo! Estava eu navegando pelas redes
sociais, sem nenhum tipo de pretensão, olhando as publicações de forma
aleatória sem a pretensão de achar nada e vi uma publicação de um produtor
artesanal expondo o seu rótulo da casta Merlot e aquilo me fez parar e olhar
com mais atenção.
Olhei de cara que era um vinho artesanal, que estava
estampado no rótulo, e que vinha de uma cidade chamada Serra Negra, em São
Paulo. Aquilo já me contaminou de interesse incontido! Mas esbarrei em uma
questão: onde comprar? Comentei na publicação sobre detalhes do vinho e também
perguntei onde poderia compra-lo e com um link de site eu tive a resposta: Pemarcano Vinhos.
Logo acessei o site, mas com aquele sentimento de
incredulidade, pensando em encontrar valores demasiadamente altos, mas acessei
mesmo assim. Lá estava o vinho e pasme, ele custava R$ 35,00! Não acreditei,
não esperava que fosse encontrar um vinho artesanal por esse preço. Há sim
vinhos artesanais com esse valor. Depois fui descobrindo, emaranhando nos
vinhos da região de São Paulo, do interior desse estado, e descobri que há
várias adegas artesanais e pequenas que produzem e vendem seus vinhos
artesanais e coloniais a preços muito competitivos.
Então vamos às apresentações: O vinho que eu degustei e
gostei veio do Brasil, da região de Serra Negra, São Paulo, e se chama Família
Silotto da casta Merlot e a safra é 2019. O vinho é muito bem feito, saboroso,
como um Merlot brasileiro tem de ser e faz com se desaba quaisquer preconceitos
que possa existir com os vinhos artesanais e este rótulo é um grande
representante desta quebra de paradigma. Mas antes de falar do vinho falemos um
pouco da região de Serra Negra e também da breve história do Brasil
vitivinícola que nos ajudará e muito a entender o conceito do vinho artesanal.
Serra Negra, o circuito das águas.
Encravada na Serra da Mantiqueira a 150 quilometros da
capital, em uma região de 927 metros de altitude com picos de até 1.300metros
está localizada a Estância Turística Hidromineral de Serra Negra.
A cidade é cercada por montanhas da Serra da Mantiqueira, a
vegetação é exuberante, compondo um cenário de extraordinária beleza natural.
Em meio ao Circuito das Águas Paulista, Serra Negra possui um ambiente seguro e
agradável. Aqui a tranquilidade e qualidade de vida estão presentes por meio da
boa estrutura turística.
A cidade possui uma das maiores redes hoteleiras da região do
Circuito das Águas Paulista e por isso pode abrigar milhares de pessoas que
fazem a população de visitantes aumentar durante as férias e feriados oferecendo
total comodidade e conforto.
Além da exuberante riqueza natural, a cidade possui
diversidade e amplos tesouros culturais, como a produção rural e a produção
artesanal de queijos e bebidas.
Quem procura
uma experiência única a Rota do Café, do Queijo e do Vinho excelente e rica
opção de passeio. São 8 km de extensão, a estrada leva os visitantes para
conhecer as delícias tradicionais e artesanais produzidas na cidade. Cada sítio
é especializado em um produto, seja ele café, queijos ou vinhos.
Breve história do Brasil vitivinícola e o conceito de vinho
artesanal
O Brasil foi descoberto pelos Portugueses em 1500, e em 1532
Martim Afonso de Souza chegou com as primeiras mudas de videiras vitis
viníferas que foram plantadas na Capitania de São Vicente, porém sem sucesso em
função do clima e do solo. Mas Brás Cubas membro da expedição de Martim Afonso
de Souza transfere as plantações do litoral para o Planalto Atlântico e em 1551
consegue elaborar o primeiro vinho brasileiro, mas sem muito sucesso, sua
iniciativa não teve sequência devido as condições de solo e clima não serem
adequados ao cultivo das videiras.
Em 1626 os Jesuítas chegaram à região das Missões e
impulsionam a vitivinicultura no Sul do Brasil. O Padre Roque Gonzales de Santa
Cruz recebeu os créditos pela introdução das videiras no Rio Grande do Sul, com
ajuda dos Índios foi elaborado vinho utilizado nas celebrações religiosas.
Em 1640 foi promovida a primeira degustação no Brasil. A
intenção foi de melhorar os vinhos comercializados no país. Em 1732, os
Portugueses da Região do Açores, povoaram o litoral do Rio Grande do Sul e
formaram-se colônias em Porto Alegre, Pelotas e Rio Grande, plantaram mudas de
videira provenientes do Açores e da Ilha da Madeira, mas as plantações não se
desenvolveram adequadamente.
Em 1789 a corte portuguesa percebeu o grande interesse do
Brasil pela vinicultura e proibiu o cultivo de uva no país, como forma de
proteger a sua produção em Portugal. A medida inibiu a comercialização da
bebida nas colônias e restringiu a atividade ao âmbito familiar.
Em 1808, quando da transferência da coroa portuguesa para o
Brasil é derrubada à proibição ao cultivo da uva e são estimulados os hábitos
no entorno do vinho, inclusive degusta-lo junto às refeições, encontros sociais
e festas nas comunidades religiosas.
Em 1817, os gaúchos são considerados pioneiros na vinicultura
e esse pioneirismo se materializa no lendário Manoel Macedo, produtor da cidade
de Rio Pardo, até o ano de 1835 todo o vinho que produzia era documentado, em
um dos anos ficou registrado a elaboração de 45 pipas, o que lhe rendeu a
primeira carta patente para a produção da bebida no país.
Em 1824 tem início a colonização alemã e os mesmos tinham
muito interesse em vinhos. Na mesma época o italiano João Batista Orsi se
estabelece na Serra Gaúcha e recebe de Dom Pedro I a concessão para o cultivo
de uvas europeias, torna-se um dos precursores do ramo na região.
Em 1840 pelas mãos do inglês Thomas Messiter, são
introduzidas no Rio Grande do Sul as uvas Vitis Lambrusca e vitis Bourquina, de
origem americana que são mais resistentes a doenças. Inicialmente foram
plantadas na Ilha dos Marinheiros, na lagoa dos Patos e logo se espalharam pelo
Estado.
Em 1860 a uva Isabel, uma das variedades americanas
introduzidas no Rio Grande do Sul, ganha rapidamente a simpatia dos
agricultores. Há registros de que, por volta de 1860 a uva Isabel formava
vinhedos nas cidades de Pelotas, Viamão, Gravataí, Montenegro e municípios do
Vale dos Sinos.
Em 1875 ocorre o grande salto na produção nacional de vinhos
em função da chegada em massa dos imigrantes italianos, pois, trouxeram de sua
terra natal o conhecimento técnico de elaboração dos vinhos e a cultura do
consumo, os italianos elevaram a qualidade da bebida e conferem importância
econômica à atividade.
Em 1881 foi elaborado 500 mil litros de vinho na cidade de
Garibaldi no Rio Grande do Sul, este número consta em um relatório feito em
1883 pelo cônsul da Itália, Enrico Perrod, após sua visita à região. Em 1928 é
criado o Sindicato do Vinho, essa iniciativa foi articulada por Oswaldo Aranha,
então secretário estadual do Governador Getúlio Vargas.
Em 1929 o associativismo é adotado pelos agricultores e em um
período de 10 anos, 26 cooperativas são fundadas, algumas como a Cooperativa
Garibaldi atuam até hoje. O modelo da competitividade entre os pequenos
produtores os direciona a uma situação de equilíbrio, tal equilíbrio é
alcançado na década seguinte.
Em 1951 a vinícola Georges Aubert é transferida da França
para o Brasil e marca o início de um novo ciclo. O interesse de empresas
estrangeiras no país se consolida na década de 70 e trouxe novas técnicas para
os vinhedos e para as cantinas, além de ampliar as áreas de cultivo da uva.
Em 1990 temos as vinícolas melhoradas, pois ao longo da
década de 80 os vinhedos passaram por uma tremenda reconversão, e à partir da
abertura econômica do Brasil a produção de vinho ganha impulso. O acesso a
diferentes estilos de vinhos e a concorrência com os importados levaram os produtores
a melhorar a qualidade.
Em 2002 a vitivinicultura está consolidada em diferentes
regiões, do Sul ao Nordeste do país, cada zona produtiva investe no desenvolvimento
de uma identidade própria. O pioneiro é o Vale dos Vinhedos, que conquista a
Indicação de Procedência em 2002.
E agora finalmente o vinho!
Na taça revela um vermelho rubi intenso, mas com brilhantes
reflexos violáceos, com lágrimas finas que marcam no bojo do copo e em razoável
intensidade.
No nariz se destacam os aromas frutados, frutas vermelhas e
pretas maduras, tais como framboesa, ameixa, amora, morango, as notas
amadeiradas se destacam também, mas em sinergia com a fruta e um delicado e
agradável toque floral.
Na boca é leve, redondo, equilibrado, a madeira se destaca
também no paladar, graças aos 6 meses de passagem por barricas de carvalho, a
fruta também está em evidência, a acidez é equilibrada e dita o frescor do
vinho, com taninos aveludados e um final curto.
Mais um sonho atingido com êxito! Sempre quis degustar um
vinho artesanal! Esse longa distância se encurtou com o esforço, o interesse
que, mesmo diante de olhar pessimista que nutri, ele veio de forma
despretensiosa, de uma formal atípica, mas que construí com base no interesse
que sempre pautou a minha enofilia. A história desse rótulo, da Família Silotto
é a personificação da rica, da prolífica história do Brasil dos imigrantes, do
Brasil sofrido, de seu povo batalhador que, em um intercâmbio histórico,
edificou a sua história vinífera. Degustar o Família Silotto Merlot é como se
estivéssemos degustando a história do Brasil e seus desdobramentos vínicos, mas
com os pés calcados no presente, vislumbrando um olhar no futuro. Há sim lugar
para os vinhos artesanais, para os vinhos produzidos por pequenos produtores
que, apesar de pequenos, são gigantes para a construção de uma indústria do
vinho em ascensão. Família Silotto Merlot traz as frutas maduras no aroma e no
paladar, traz as notas amadeiradas, com taninos maduros, mas domados, traz
personalidade, traz história de um povo que sabe sim fazer vinho! Tem 12,5% de
teor alcoólico.
Sobre a Família Silotto:
A História da família Silotto em Serra Negra começou quando o
italiano da região de Treviso, Pietro Silotto, comprou suas terras no bairro
das Três Barras, pois achou muita semelhança com as terras da Itália.
Neste bairro se iniciou a cidade de Serra Negra (O bairro das
Três Barras seria inicialmente o centro de Serra Negra, porém pela região
extremamente montanhosa, subiram a serra até chegar a um local mais plano, onde
é o centro atual).
Veio acompanhado de seus irmãos, Fortunato, Ângela e
Henrique. Aqui construiu sua família com treze filhos, dez homens (Basílio,
Ermínio, José, Olívio, Quinto, Atílio, aqui todos lavoravam. Cada filho criou
sua família, sempre juntos morando na casa acima construída em 1934 por Pietro
Silotto. Já mais velho resolveu dividir suas terras entre seus filhos, sendo
assim, cada um teve seu sítio e sua casa. Continuou aqui onde tudo começou
Quinto Silotto, seu 5º filho.
Pietro viveu aqui até o final de seus dias, deixando a sede
para Quinto Silotto. Quinto também trabalhou muito, teve dez filhos, sete
mulheres (Nera, Maria Inês, Dalva, Maria Alice, Elza, Julietta, Bertina) e três
homens (Décio, mais conhecido como Neno, Alfeu e José Carlos);
Dois de seus filhos começaram a trabalhar na lavora com sete
anos e continuam até os dias de hoje. Cuidam das terras com muito amor, pois
foi esse amor que veio desde o começo.
Aqui cuidam da videira centenária plantada por Pietro
Silotto, do cultivo da cana e do café e da produção de bebidas artesanais, com
a mesma tradição e dedicação de seus antepassados. Tudo isso com muito suor e
orgulho.
Mais informações acesse:
Referências:
“Clube do Vinho Artesanal”: https://clubedovinhoartesanal.com.br/vinho-caseiro
“Em algum lugar do mundo”: https://emalgumlugardomundo.com.br/o-que-fazer-em-serra-negra/