Sempre ouvi que para degustar um rótulo com a conhecida
“rainha das uvas tintas”, a Cabernet Sauvignon, tem que ser na “versão”
encorpada, amadeirada. Esses são, na visão da maioria, os melhores rótulos com
a Cabernet Sauvignon.
Respeito a opinião alheia, afinal, todos têm a sua visão
particular, a sua percepção do vinho, onde a opinião pode ser divergente de um
mesmo vinho, de uma mesma safra. Isso é salutar, mas tem certas visões,
opiniões que vagam por aí, principalmente pelas redes sociais, que assumiram um
caráter de tabu.
E tabu definitivamente tem de ser quebrado, a famosa quebra
de paradigma que devemos ter no universo, por vezes, conservador e até
intolerante do vinho. Há algum tempo atrás ouvi de um formador de opinião que o
Malbec, por exemplo, tem de ser encorpado, amadeirado e que esta proposta
revela a identidade, o DNA, como ele disse, da cepa na emblemática região
argentina de Mendoza.
E citou o vinho que estava expondo (na realidade, além de
formador de opinião, ele possui algumas lojas de vinhos em São Paulo, muito
conhecidas, inclusive) o tradicional Catena que trazia essa proposta de Malbec
mais encorpado.
Aquilo me inquietou e decidi subverter e procurar Malbecs sem
passagem por barricas de carvalho e focado mais na fruta, na essência, sem
tanta intervenção ou o mínimo possível. Encontrei alguns rótulos e tive uma
surpresa positiva acerca da qualidade, da tipicidade deles.
Sim! É possível! Claro que a missão é mais difícil, afinal, o
marketing é muito forte, quase inquisitivo para que se deguste um Malbec, um
Cabernet Sauvignon amadeirado, encorpado, logo caro. O mercado brasileiro está
cheio deles! E isso acabou por firmar uma cultura, diria, equivocado, pois,
penso, há outras propostas de vinhos com essas variedades que pode entregar o
que a gente espera ou mais!
Então quando estava a pensar em enveredar na aventura, na
missão de encontrar alguns Cabernets com uma proposta mais direta, de um vinho
jovem, sem passagem por barrica de carvalho, um rótulo chegou a mim, não fui
até ele.
E foi, mais uma vez, um carinho presente do amigo Luciano
Feliputti, da loja Pemarcano Vinhos, especializada em vinhos da tradicional
região paulista de São Roque. Então, com essa generosa cortesia, além da
aventura de degustar um Cabernet Sauvignon mais despretensioso, sem madeira e
que entregava um toque mais frutado, priorizando a essência da variedade,
algumas “estreias” também viria a acontecer.
Será minha primeira experiência de um Cabernet Sauvignon da
região de São Roque. Não vou tecer maiores comentários sobre a região em
questão, pois felizmente tenho tido algumas experiências com vinhos da região,
mesmo que embora recentes, mas especiais. Não há como esconder a alegria de
degustar vinhos de pequenos produtores brasileiros, porém de uma região gigante
em sua história para a vitivinicultura nacional.
Então sem mais delongas, vamos às apresentações! O vinho que
degustei e gostei veio, como disse, de São Roque e se chama Adega Terra do
Vinho, um 100% Cabernet Sauvignon da safra 2017. E como disse que São Roque
está mais presente em minha vida enófila, direi que tive o privilégio de já ter
degustado um rótulo deste produtor e, claro, gostei muito. Foi o Genuíno Carménère da safra 2017. E, por uma grata coincidência, fora a minha primeira
experiência com um Carménère brasileiro o que ainda não é comum em nossas
terras. Então antes dos detalhes do vinho sigamos com a história de São Roque,
que é uma maravilha à parte.
São Roque: A terra do vinho!
A cidade de São Roque foi fundada no dia 16 de agosto de
1657, mas começou como uma grande fazenda do capitão paulista Pedro Vaz de
Barros, que pertencia a uma família de bandeirantes e sertanistas. Vaz de
Barros também participou de diversas Bandeiras. O fundador da cidade, também
conhecido como Vaz Guaçú, contava com aproximadamente 1.200 índios que
trabalhavam em suas terras, onde eram cultivados trigo e uva. Alguns anos após
a morte de Vaz de Barros, seu irmão, Fernão Paes de Barros, se estabeleceu na
mesma região, onde construiu uma casa e uma capela, que foram restauradas em
1945 pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a pedido do
escritor Mário de Andrade, dono da propriedade.
Na região de São Roque, podem-se identificar referências à
vitivinicultura desde a sua fundação, por volta do final do século XVII.
Conforme informações encontradas e divulgadas pelos moradores da cidade,
através da tradição oral, ou mesmo citado pelo Professor Joaquim Silveira dos
Santos em seu artigo para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São
Paulo, volume XXXVII, nessa época toda a região pertencia a apenas três grandes
proprietários de terras: Pedro Vaz de Barros, seu irmão Fernão Paes de Barros e
o padre Guilherme Pompeu de Almeida, sendo que Pedro Vaz (tido como o fundador
da cidade) se estabeleceu próximo da atual igreja Matriz, seu irmão mais ao
norte, onde até hoje ainda se encontra a casa grande e capela Santo Antônio, e
por fim a fazenda do padre Guilherme Pompeu se encontrava na hoje atual cidade
de Araçariguama que faz divisa com Santana do Parnaíba.
Portanto realmente não se podem esperar grandes referências
desse período da história, afinal o Brasil era apenas uma colônia e que
existiam restrições da fabricação de qualquer tipo de produto em nosso solo, ou
seja, em tese tudo deveria vir de Portugal, inclusive o vinho.
Outro fator que pode ter influenciado e não ter feito
prosperar o cultivo da videira seria a prioridade da época de então, que era a
descoberta de ouro, principalmente na região das Minas Gerais. Sabemos que São
Paulo até então era somente um vilarejo sem grande importância econômica para a
metrópole portuguesa, e se bem analisarmos a história da agricultura brasileira
a uva e o vinho nunca foram tidos como principal interesse por parte de nossos
colonizadores.
Após um período difícil, o povoado originado por Pedro Vaz
foi elevado à categoria de Freguesia no dia 15 de agosto de 1768, recebendo o
nome de São Roque do Carambeí. No dia 10 de julho de 1832, a Freguesia foi
elevada à categoria de vila, mas o progresso do local só começou em 1838,
quando começaram as lavouras de milho, algodão, arroz, mandioca e farinha de
mandioca, cana de açúcar e derivados, legumes e verduras. Em março de 1846,
seis anos após instalar-se na vila o destacamento da Guarda Nacional, Dom Pedro
II e uma pequena comitiva permaneceram um dia na cidade de São Roque. Com a
passagem de Dom Pedro II, Antônio Joaquim começou a se destacar no cenário
político e, graças ao morador ilustre, São Roque foi elevada à categoria de
cidade no dia 22 de abril de 1864.
Após esse longo período de estagnação, o primeiro registro
oficial de plantação de uvas na região de São Roque se dá por volta de 1865,
quando o Doutor Eusébio Stevaux inicia uma pequena plantação na sua fazenda em
Pantojo. Pela mesma época, um colono italiano adquire uma pequena propriedade
no bairro de Setúbal, alguns anos mais tarde um português na terra do então
Sítio Samambaia forma um razoável vinhedo e inicia o processo de fabricação do
vinho.
Já em 1875 foi inaugurada a Estrada de Ferro Sorocabana, que
ligou a cidade de São Paulo a São Roque e Sorocaba. Após alguns anos, em 1884,
começou a grande chegada de imigrantes à cidade, fazendo com que as vinícolas
aparecessem novamente e ganhassem força nos anos seguintes. Em 1924, a cidade
já contava com 17.300 habitantes e foram produzidos 10 mil litros de vinho a
cada ano, tendo doze produtores de vinhos, sendo cinco deles italianos.
O que possibilitou o retorno da cultura da uva e fabricação
do vinho foi a importação de videiras oriundas dos Estados Unidos, pois estas
eram mais resistentes ao clima brasileiro. Dentre as principais videiras
trazidas estão inicialmente a “Izabel”, a “Seibel 2” (importada da França),
curiosamente trazida por imigrantes italianos que se instalaram na região e
posteriormente a “Niágara Branca”, oriunda da região do Alabama, EUA.
Portanto, a divisão do período da cultura vinícola de São
Roque, desde a fundação da cidade até a época atual em quatro fases distintas:
1ª fase: 1657 – 1880: importação de videiras portuguesas,
plantações domiciliares, sem qualquer cunho comercial, ou seja, somente para
consumo próprio.
2ª fase: 1880 – 1900: Retomada da viticultura são-roquense,
ainda que amadora, quase que familiar, continua voltada basicamente para o consumo
e pequeno varejo. Já apresenta uma tendência a profissionalização graças às
técnicas trazidas pelos imigrantes italianos e portugueses. Já se utiliza da
videira americana que melhor se adaptou ao clima tropical brasileiro (talvez
seja este um dos principais fatores de sucesso do cultivo da uva na região de
São Roque);
3ª fase 1900 – até aproximadamente final da década de 1950:
processo de industrialização e profissionalização da produção do vinho com
aplicações de técnicas mais modernas permitindo assim obter resultados e
desempenho melhores.
Podemos dividir esta fase primeiramente num período de início
do processo de profissionalização e logo após (a partir da década de 1920), o
período em que realmente a região investiu e desenvolveu as técnicas vinicultoras,
durando até aproximadamente a década de 1950, onde após a massificação da
produção entra num processo de decadência.
4ª fase década de 1960 – atual: esta fase engloba o processo
de decadência da viticultura são-roquense. Por motivos econômicos e climáticos
e até mesmo por falta de investimentos em pesquisas, que se reduziram
sensivelmente tanto a qualidade como a quantidade de vinho produzido, levando
ao fechamento de diversas adegas (isso principalmente a partir da década de
1980). São Roque permanecendo hoje somente com o título de “terra do vinho”,
sendo que os poucos fabricantes que restaram (aproximadamente treze adegas)
fabricam seu vinho não de uvas nativas de São Roque, mas sim oriundas de outras
partes do Estado ou mesmo de outros estados (exemplo: Rio Grande do Sul).
Há atualmente um movimento para tentar a reversão dessa
situação, porém continua bem modesto em relação a todo o histórico e números do
passado no ápice do cultivo da videira em São Roque.
E agora finalmente o vinho!
Na taça dispõe de um vermelho intenso, escuro, com
tonalidades arroxeadas que marcam no bojo do copo, com lágrimas grossas, lentas
e em média intensidade.
No nariz traz aromas intensos de frutas vermelhas bem maduras,
algo herbáceo e notas de especiarias, aquele típico pimentão, mas sentido de
forma discreta.
Na boca é seco, redondo, equilibrado, leve, a fruta madura é
percebida, como no aspecto olfativo, conferindo-lhe sabor e ainda alguma
jovialidade, graças também a boa acidez, com taninos delicados e domados, além
de toques vegetais, de terra molhada. Tem um final cheio e prolongado.
A minha primeira experiência com um varietal da casta
Cabernet Sauvignon, da cidade de São Roque, trouxe algo óbvio, pelo menos para
mim: Que vinho, na multiplicidade de suas propostas e nuances, não podem ser
tipificados por “pior”, ou “melhor,” entre si. Não há como comparar um Catena,
com passagem por madeira, com aquele Malbec sem passagem por barrica, não
porque o Catena seja infinitamente melhor, mas porque não possuem as mesmas
propostas. E assim o é com o Terra do Vinho Cabernet Sauvignon. Não se pode
comparar com os chilenos Gran Reserva, por exemplo, que passam por madeira.
Terra do Vinho Cabernet Sauvignon entrega aromas de frutas vermelhas, um toque
vegetal discreto, notas de especiarias, tudo o que um Cabernet Sauvignon, no
ápice de sua essência pode entregar. Tem 12,5% de teor alcoólico.
Sobre a Adega Terra do Vinho:
Em meados de 1966, a família Oliveira Santos decidiu
dedicar-se a sua grande paixão: o Mundo do Vinho e abriu a Cantina Vieira
Santos.
Empenho, dedicação e amor eram palavras de ordem dos irmãos,
especialmente para o Moacyr. A Cantina cresceu, mudou e hoje se chama Adega
Terra do Vinho. Como patriarca, certamente o Moacyr não imaginou que seu
trabalho chegaria tão longe com o mesmo espírito e garra.
A paixão pelos vinhos fez nascer a pequena Adega do Moacyr
com seus vinhos artesanais. Hoje a adega cresceu, mas continua trazendo, em
cada garrafa, a mesma paixão.
Mais informações acesse:
https://www.adegaterradovinho.com.br/index.html
Referências:
“Assembleia Legislativa de São Paulo”: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=301135
“Blog do Lullão”: http://www.lullao.com/p/historia-do-vinho-em-sao-roque.html?m=1
“Sites
Google”: https://sites.google.com/site/historiadovinhodesaoroque/home/historia-do-vinho-de-sao-roque
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