Vou contar uma história recente com uma das minhas castas
preferidas, a Merlot, para enfatizar um antigo apreço por esta variedade. E,
contando essa história, vou enaltecer esse carinho, esse apego sentimental por
ela, responsável por me introduzir no universo dos vinhos finos, vitis
vinífera.
Estava eu participando de uma live, um recurso tecnológico de
comunicação que ganhou certa receptividade pelas pessoas atualmente, muito em
decorrência dos períodos sombrios pandêmicos em que não podíamos socializar,
mantendo um distanciamento físico, com um desses emergentes críticos e especialistas
de vinhos, acredito que era um sommelier, mas que escrevia também sobre vinhos
e que também lecionava sobre.
Hoje estamos também testemunhando, muito graças, penso, a
proliferação de alguns formadores de opinião do vinho e não falo com rejeição,
mas, em alguns momentos com preocupação, pois, com o advento das redes sociais,
o filtro de competência e qualidade nas informações disseminadas não são tão,
digamos, apuradas, mas precisamos, mesmo em momentos como esse, respeitar essas
movimentações democráticas e saber separar o que cada um de nós julga ser bom
ou ruim para a gente, no que tange aos conteúdos.
O tema da “live” era as principais castas tintas, as mais
famosas. Quando a pauta passou a ser o Merlot, eu decidi participar e fiz uma
pergunta que julgava ser importante discutida sobre o atual cenário de cultivo
desta no Brasil: Perguntei se podemos considerar a Merlot brasileiro, os
rótulos dessas castas produzidos no nosso país, as melhores do mundo.
Não sei se eu não me fiz entender direito ou ele que não
compreendeu, mas disse que era para ter cautela nessa observação e que poderia
ser um comentário ufanista. Nunca! Cautela? Talvez! Ufanista? Nunca! É fato
que, apesar dos tributos, da miopia dos nossos produtores sob o aspecto
corporativo da coisa, o custo Brasil alto, os rótulos brasileiros melhoraram,
ganhou em tipicidade e, ao longo do tempo e sou testemunha disso, que os
Merlots nacionais é o que vem tendo destaque, não tanto quanto os nossos
espumantes, mas vem sim, tendo visibilidade.
E depois dessa live decidi me debruçar nas pesquisas e buscar algumas respostas para as minhas dúvidas e perguntas, bem como eventuais equívocos de minha parte em relação a esse tema e li algumas matérias, alguns comentários de outros especialistas acerca da Merlot brasileiro e achei uma que me chamou a sua atenção do Dirceu Vianna Júnior, Master of Wine do Brasil e radicado há muitos anos em Londres.
Ele reuniu, em 2010, um grupo de 40 profissionais
internacionais, entre eles 15 Masters of Wine, para uma degustação às cegas de
vinhos com a variedade Merlot produzidos em 11 países diferentes. O resultado
foi impressionante: entre os 10 melhores classificados pelos especialistas,
oito eram brasileiros (ler matéria completa em: Sucesso da Merlot no Brasil). Acredito que esse dado
corrobora a questão por mim levantada na live, que expressa o promissor cenário
dos grandes rótulos produzidos em nossas terras, com o nosso terroir que vem se
destacando e não podemos negligenciar isso. Claro que não podemos negar os
centros tradicionais, como Bordeaux, por exemplo, a questão não é uma corrida
para ser o melhor, mas colocar o Brasil no rol dos melhores pode ser uma
realidade.
E falando em terroir, a Serra Gaúcha, a mais importante e
tradicional região vinícola do Brasil, vem se tornando o centro dos grandes
Merlots. E por que estou dizendo tudo isso e contando toda essa história? Para
enfatizar o meu carinho e a minha gratidão por essa casta e que a meu caminho
para descobri-la, em todas as suas nuances e características, de acordo com o
seu terroir, continua e prezo pelas novidades. Então hoje, nesta fria, mas
agradável noite, decidi abrir um “debutante”, um quase debutante de quatorze
anos de vida, de safra!
E um Merlot dos Vale dos Vinhedos, da Serra Gaúcha! É sempre
muito gratificante degustar um Merlot da Serra Gaúcha, mas mais gratificante
ainda é degustar um vinho com certa idade, com mais de uma década de garrafa.
Certos caminhos eu jamais pensei em percorrer e esse, de experimentar vinhos
com esse tempo de safra, sempre me pareceu impossível. Mas cá estou relatando,
registrando nesse texto esse momento único, importante para mim e melhor: Um
vinho nacional! Quem disse que os brasileiros não podem, não conseguem fazer
rótulos com longevidade?
O vinho que degustei e gostei, com todas as honras,
privilégios e reverências possíveis, veio do Vale dos Vinhedos, da Serra
Gaúcha, do Brasil e se chama Cavas do Vale Merlot Reserva da safra 2008. E o
mais prazeroso de ser submetido a essas experiências sensoriais é de degustar
vinhos de pequenos e desconhecidos produtores que sim, merecem respeito e
respaldo do poder público e de toda a cadeia do vinho neste Brasil. Então sem
mais delongas falemos um pouco da Serra Gaúcha e do Vale dos Vinhedos que hoje,
vem ganhando notoriedade no universo do vinho brasileiro.
Serra Gaúcha
Situada a nordeste do Rio Grande do Sul, a região da Serra
Gaúcha é a grande estrela da vitivinicultura brasileira, destacando-se pelo
volume e pela qualidade dos vinhos que produz. Para qualquer enófilo indo ao
Rio Grande do Sul, é obrigatório visitar a Serra Gaúcha, especialmente Bento
Gonçalves.
A região da Serra Gaúcha está situada em latitude próxima das
condições geoclimáticas ideais para o melhor desenvolvimento de vinhedos, mas
as chuvas costumam ser excessivas exatamente na época que antecede a colheita,
período crucial à maturação das uvas. Quando as chuvas são reduzidas, surgem
ótimas safras, como nos anos 1999, 2002, 2004, 2005 e 2006.
A partir de 2007, com o aquecimento global, o clima da Serra
Gaúcha se transformou, surgindo verões mais quentes e secos, com resultados
ótimos para a vinicultura, mas terríveis para a agricultura. Desde 2005 o nível
de qualidade dos vinhos tintos vem subindo continuamente, graças a esta mudança
e também do salto de tecnologia de vinhedos implantado a partir do ano 2000.
Vale dos Vinhedos e a sua Indicação de Procedência
O Vale dos Vinhedos localiza-se no centro do triângulo
formado pelas cidades de Bento Gonçalves (nordeste), Monte Belo do Sul
(noroeste) e Garibaldi (sul). O Vale dos Vinhedos compreende a parte da bacia
hidrográfica do Rio Pedrinho, situada a montante da foz de um córrego afluente
deste e situado a sudeste da comunidade de Vale Aurora, no município de Bento
Gonçalves.
A parte do vale a jusante é denominada de Vale Aurora. A
maior parte da área do Vale dos Vinhedos fica localizada em território do
município de Bento Gonçalves, com 55% do total, e a menor parte fica localizada
em território de Monte Belo do Sul, com 8% na porção noroeste. A parte sul do
Vale pertence ao município de Garibaldi, com 37% da área total. Parte da zona
urbana de Bento Gonçalves situa-se dentro do perímetro do Vale, haja vista que
a linha divisória de águas entre as bacias do Rio Pedrinho e do Rio Buratti
passa pela parte oeste da cidade. Localizam-se ao longo desta linha, ou próximo
desta, a pista do Aeroclube de Bento Gonçalves, a Estação Rodoviária de Bento
Gonçalves, o Estádio da Montanha e a Estação Ferroviária de Bento Gonçalves.
O Vale dos Vinhedos é a primeira região vinícola do Brasil a
obter Indicação de Procedência de seus produtos, exibindo o Selo de Controle em
vinhos e espumantes elaborados pelas vinícolas associadas. Criada em 1995, a
partir da união de seis vinícolas, a Associação dos Produtores de Vinhos Finos
do Vale dos Vinhedos (Aprovale), já surgiu com o propósito de alcançar uma
Denominação de Origem. No entanto, era necessário seguir os passos da
experiência, passando primeiro por uma Indicação de Procedência.
O pedido de reconhecimento geográfico encaminhado ao
Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) em 1998 foi alcançado
somente em 2001. Neste período, foi necessário firmar convênios operacionais
para auxiliar no desenvolvimento de atividades que serviram como pré-requisitos
para a conquista da Indicação de Procedência Vale dos Vinhedos (I.P.V.V.). O
trabalho resultou no levantamento histórico, mapa geográfico e estudo da
potencialidade do setor vitivinícola da região. Já existe uma DOC (Denominação
de Origem Controlada) na região.
Sua norma estabelece que toda a produção de uvas e o
processamento da bebida seja realizada na região delimitada do Vale dos
Vinhedos. A DO também apresenta regras de cultivo e de processamento mais restritas
que as estabelecidas para a Indicação de Procedência (IP), em vigor até a
obtenção do registro da DO, outorgado pelo INPI.
O Vale dos Vinhedos foi a primeira região entregue aos
imigrantes italianos, a partir de 1875. Inicialmente desenvolveu-se ali uma
agricultura de subsistência e produção de itens de consumo para o Rio Grande do
Sul. Devido à tradição da região de origem das famílias imigrantes, o Veneto,
logo se iniciaram plantios de uvas para produção de vinho para consumo local.
Até a década de 80 do século XX, os produtores de uvas do Vale dos Vinhedos
vendiam sua produção para grandes vinícolas da região. A pouca quantidade de
vinho que produziam destinava-se ao consumo familiar.
Esta realidade mudou quando a comercialização de vinho entrou
em queda e, consequentemente, o preço da uva desvalorizou. Os viticultores
passaram então a utilizar sua produção para fazer seu vinho e comercializá-lo
diretamente, tendo assim possibilidade de aumento nos lucros.
Para alcançar este objetivo e atender às exigências legais da
Indicação Geográfica, seis vinícolas se associaram, criando, em 1995, a
Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos (Aprovale).
Atualmente, a Aprovale conta com 24 vinícolas associadas e 19 associados não
produtores de vinho, entre hotéis, pousadas, restaurantes, fabricantes de
produtos artesanais, queijarias, entre outros. As vinícolas do Vale dos
Vinhedos produziram, em 2004 9,3 milhões de litros de vinhos finos e
processaram 14,3 milhões de kg de uvas viníferas.
Detalhes da Denominação de Origem do Vale dos Vinhedos
1 - A produção de uvas e a elaboração dos vinhos ocorrem
exclusivamente na região delimitada do Vale dos Vinhedos, uma área de 72,45 km2
localizada nos municípios de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul.
2 - Existem requisitos específicos para de cultivo dos
vinhedos, produtividade e qualidade das uvas para vinificação;
3 - Os espumantes finos são elaborados exclusivamente pelo
“Método Tradicional” (segunda fermentação na garrafa), nas classificações
Nature, Extra-brut ou Brut; para este produto as uvas Chardonnay e/ou Pinot
Noir são de uso obrigatório;
4 - Nos vinhos finos brancos, a uva Chardonnay é de uso
obrigatório, podendo ter corte com a Riesling Itálico;
5 - O uso da uva Merlot é obrigatória para os vinhos finos
tintos da DO, os quais podem ter cortes com vinhos elaborados com as uvas
Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc e Tannat;
6 - Os produtos que passam por madeira envelhecem exclusivamente
em barris de carvalho;
7 - Para chegar ao mercado, os vinhos brancos passam por um
período mínimo de envelhecimento de 6 meses; no caso dos vinhos tintos são 12
meses; os espumantes finos passam por um período mínimo de 9 meses em contato
com as leveduras, na fase de tomada de espuma;
8 - Os vinhos apresentam características analíticas e
sensoriais específicas da região e somente são autorizados para comercialização
os produtos que obtenham do Conselho Regulador da DO o atestado de conformidade
em relação aos requisitos estabelecidos no Regulamento de Uso.
E agora falando do vinho:
Na taça revela um vermelho granada, atijolado, com halos
evolutivos, denunciando seus 14 anos de safra, límpido e muito brilhante. Com
lágrimas em profusão, finas e lentas, desenham as bordas do copo.
No nariz o destaque fica para os aromas terciários e as notas
frutadas, frutas vermelhas maduras, frutas secas e em compota, como: avelã,
groselha e cereja. As pipas de madeira, onde o vinho ficou armazenado,
pronunciou as frutas. Percebem-se também terra molhada, fumaça, um defumado, as
especiarias, representadas pela pimenta e ervas secas. Sente-se também,
discretamente, um floral, flores vermelhas.
Na boca traz austeridade e não é por uma eventual estrutura,
pois o vinho é leve, mas por ser equilibrado, elegante, sofisticado, garantido
pelos seus anos de safra. É leve, porém de marcante personalidade,
principalmente pela sua complexidade e um bom volume de boca, graças também as
notas frutadas. Tem uma acidez correta, o que surpreende pelo tempo de vida,
taninos domados, finos e um final cheio, longo e de retrogosto frutado.
Há um longo caminho a se percorrer para o Brasil se tornar um
polo de referência na produção vitivinícola? Sim! Somos muitos jovens na
produção de vinhos finos no Brasil, sobretudo diante de uma longa e secular
história de vinhos coloniais, por exemplo, os famosas uvas de mesa, dos
garrafões, mas vejo, por intermédio de rótulos que, cada vez mais expressam a
tipicidade e os terroirs das principais regiões do Brasil na produção de
vinhos, um futuro promissor e brilhante pela frente, mesmo com algumas
adversidades de quem deveria fomentar o apoio. Mas sigamos aprendendo com os
erros.
O fato é de que, além de fatos, estudos, depoimentos e
história, a maior prova, a prova mais contundente e cabal é aquela que está na
nossa taça, nas nossas adegas, nas nossas mesas, de rótulos como o Cavas do
Vale Merlot Reserva que, mesmo com quatorze longos anos, se mostra vivo, pleno
e com algum tempo pela frente, caso optasse pela continuidade de seu repouso,
de sua evolução. E como evoluiu bem esse vinho, revelando às notas terciárias,
as especiarias, as notas de frutas secas, a terra molhada. Como é prazeroso ser
submetido à essas experiências e como nos tornamos pequenos perante a natureza
e a sua gigante capacidade de nos proporcionar o que de melhor dela vem. Que
possamos ter saúde para testemunhar as redenções do Brasil vitivinícola e dos
seus rótulos. Tem 12,3% de teor alcoólico.
Sobre a Vinícola Cavas do Vale:
A Cavas do Vale é uma vinícola pequena, familiar, artesanal,
que elabora vinhos a partir de uvas próprias cultivadas no coração do Vale dos
Vinhedos, pelo método tradicional e pipas de madeiras, com a menor intervenção
possível de maquinários e produtos enológicos.
A sua história começa em 1954 quando Lucindo Brandelli inicia
uma pequena produção de vinhos no porão de casa para consumo próprio, logo a
paixão pela vitivinicultura cresceu e o cultivo de uva e produção de vinho tornou-se
o negócio da família.
Em 2005, dando continuidade ao projeto do patriarca, um de
seus filhos, Irineu Brandelli, enólogo com mais de 30 anos de experiência,
funda a Cavas do Vale, elaborando vinhos das uvas Merlot, Cabernet e Tannat e
já na primeira safra é brindado pela natureza com a histórica safra de 2005,
que originou o vinho Gran Reserva Lucindo Brandelli.
Hoje a vinícola Cavas do Vale se destaca pelos seus vinhos de
guarda, o Cavas do Vale Reserva Safra 2008 e o Gran Reserva Lucindo Safra 2005,
vinhos vivos, ricos, complexos e com muitos anos de vida pela frente e que
refletem ao máximo o terroir do Vale dos Vinhedos.
Mais informações acesse:
https://loja.cavasdovale.com.br/
Referências:
“Academia do Vinho”: https://www.academiadovinho.com.br/__mod_regiao.php?reg_num=SERRAGAUCHA
“Blog Sonoma”: https://blog.sonoma.com.br/o-sucesso-da-merlot-no-brasil/amp/
“Vinho IG”: https://vinho.ig.com.br/2010/08/17/merlot-brasileiro-e-melhor-do-mund.html
“Wikipedia”: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vale_dos_Vinhedos#Denomina%C3%A7%C3%A3o_de_Origem_Vale_dos_Vinhedos
“Viajali”: https://www.viajali.com.br/vale-dos-vinhedos/
“Embrapa”: https://www.embrapa.br/indicacoes-geograficas-de-vinhos-do-brasil/ig-registrada/do-vale-dos-vinhedos