domingo, 1 de agosto de 2021

Amandla! Pinotage 2019

 

Sou réu confesso! Nunca me interessei em degustar um vinho tendo como princípio um prato, uma comida. Essa sempre foi um coadjuvante diante do protagonismo do vinho e digo mais: nunca fui muito bom em harmonizar vinho com comida, embora eu acredite humildemente que a harmonização de comida com vinho é um experimento, parte de alquimia, sempre experimentando, buscando o paladar, o casamento perfeito, é basicamente aquele que te faz bem, que os teus sentidos dão um feedback positivo.

Hoje a escolha do vinho se deu por conta de uma comida que vi minha mãe preparando, um prato que adoro: carnes inundados em um feijão manteiga. Então pensei: Por que não harmonizar isso tudo com um bom vinho? Com aquele vinho mais encorpado, haja vista também que estamos passando por um inverno que, para os parâmetros cariocas, rigoroso. Parecia que tudo conspirava a favor.

Então me coloquei a observar com carinho na adega, será que eu encontraria um vinho à altura do meu súbito interesse por uma degustação hoje? Por que súbito? Não estava no roteiro uma degustação hoje. Ah e precisa de roteiro? Precisa sim do amor ao vinho e da taça cheia, na hora em que você quiser e puder.

Depois de uma criteriosa, mas rápida verificação (para os meus padrões) na adega eis que surgiu a escolha do rótulo e estava muito eufórico com essa escolha e com o seu propósito: a harmonização com o prato tão carinhosamente feito pela minha mãe: aquele típico prato dominical em família.

Trata-se um sul africano, uma proeminente região no Novo Mundo que já se tornou uma referência na produção de grandes vinhos nas suas mais diversas propostas, a tradição no Novo Mundo, por que não? E melhor, de uma região especial e que sem sombra de dúvida que foi e será a porta de entrada de muitos enófilos nos rótulos da terra de Mandela: Western Cape, a toda poderosa região vitivinícola da África do Sul.

E adivinhem a casta: Pinotage, a cepa autóctone das terras sul africanas e apesar do óbvio sempre se torna especial quando degusto um vinho da casta Pinotage. Então sem mais delongas apresento o Vinho que degustei e gostei que veio, claro, da emblemática região de Western Cape e que se chama Amandla! Pinotage da safra 2019.

Não é a primeira vez que degustei um vinho dessa linha de rótulos, tive uma ótima impressão do Amandla! Red Fusion 2019, um blend explosivo das principais cepas produzidas na África do Sul. Mas neste novo rótulo eu percebi um detalhe que me chamou a atenção: “Bush Wines”. O que é isso? Confesso que não conhecia o significado e, como sempre aprendi que temos de ler cada canto do rótulo para saber o que estamos degustando, me debrucei nas pesquisas. Falemos de “Bush Wines”, da região de Western Cape e um pouquinho da ótima casta Pinotage.

“Bush Wines”

O termo em inglês, “Bush Vines” ou “Bush Wines”, pode parecer distante para muita gente, até mesmo entre especialistas e enófilos, mas, traduzindo-o, “Vinhas Arbustivas” ou “Vinhos de Arbusto”, o termo pode parecer mais familiar, contudo, ainda assim, é um conceito distante, sobretudo para os brasileiros, apesar de termos e palavras populares no dicionário dos apreciadores da nobre bebida. Mas afinal de contas o que de fato significa “Vinhas Arbustivas”?

Dependendo do clima, do estilo do vinho, do solo e de outros fatores, a videira é podada de forma específica e adquire uma formação especial. A videira arbustiva é, portanto, um estilo de poda que, como o próprio nome indica, é em forma de arbusto e é um dos estilos de poda mais antigos do mundo. Geralmente tem um tronco curto e o topo é um tanto irregular e não como as vinhas de Bordeaux, por exemplo, que têm esse formato em "T" (cientificamente chamado Double Fuyot).

Vinhas de Bordeaux (Double Fuyot)

Mas por que alguém escolheria? Pois bem, com este formato a videira passa a ter quantas folhas forem necessárias para a sombra, para que o fruto não queime enquanto ajuda no amadurecimento gradual e adequado das uvas. Também ajuda a ventilar a videira evitando doenças como o bolor. Diante disso entende-se que as vinhas de arbusto são ideais para áreas com clima quente e muito sol, como o Ródano, África do Sul, Austrália e Grécia. Ao mesmo tempo, as raízes das vinhas arbustivas têm a capacidade de atingir até 20 metros de profundidade em busca de água. Isso os torna ideais para climas secos, bem como para áreas onde a irrigação é difícil ou proibida.

Vinhas arbustivas

Por outro lado, as vinhas arbustivas também apresentam algumas desvantagens. O mais importante deles é a incapacidade de realizar a colheita mecânica. Como resultado, é preciso muito mais trabalho (e dinheiro) e tempo para colher as uvas. Além disso, apresentam rendimentos mais baixos, o que em combinação com o anterior conduz a uma perda de dinheiro para o produtor (a menos que consiga vender os seus vinhos a um preço superior).

E de acordo com essa desvantagem o cenário das videiras arbustivas tem declinado nas regiões de Stellenbosch, Malmesbury e Paarl, regiões emblemáticas de produção de vinhos na África do Sul, segundo dados apresentados em 1991, por Archer, do Departamento de Viticultura e Enologia da Universidade de Stellenbosch. Na área de Stellenbosch, a porcentagem de videiras sendo cultivadas como videiras arbustivas diminuíram de 59% em 1971 para 38% em 1979 e 30% em 1987. De acordo com os dados de bloco SAWIS de 2012, 23% (excluindo blocos de um ano de idade) da superfície plantada com videiras em Stellenbosch foi cultivada como vinhas. Estima-se que 80 a 90% das uvas para vinho no distrito de Malmesbury (Swartland) eram cultivadas como vinhas no final da década de 1980 (Archer, 1991). Os dados de bloco SAWIS mais recentes mostram que 47% das videiras nesta área não são gradeadas.

Um dos motivos para o afastamento das vinhas de arbusto é provavelmente o objetivo de maiores produções viabilizado por sistemas de treliça, em conjunto com a maior disponibilidade de água para irrigação. Além disso, o foco na mecanização é cada vez maior e o fato de os processos de poda e colheita em cipós não poder ser mecanizado, impacta nas considerações dos produtores no momento do estabelecimento.

O cultivo de uvas para vinho como vinhas de arbustos diminuiu e espera-se que diminua ainda mais como resultado da crescente pressão para mecanizar. Os produtores também devem buscar uma alta produção unitária, o que só é possível por meio de sistemas de treliça maiores (superfície foliar).

No entanto, as trepadeiras arbustivas continuam a ser uma opção em terrenos de menor rendimento (por exemplo, terras secas com teor de umidade do solo suficiente), onde um sistema caro de treliça não garante necessariamente produções mais altas. Muitas vezes, esse terreno permite videiras equilibradas com crescimento e produção moderados, a partir dos quais vinhos concentrados e de alta qualidade podem ser feitos. O desafio é, portanto, encontrar valor para esses vinhos nos mercados. Só então a icônica videira do mato será capaz de permanecer uma parte sustentável de nossa paisagem de vinhedos.

Alguns ligam as vinhas de arbusto ao cultivo biodinâmico e a vinhos de qualidade. Esta ligação não foi cientificamente comprovada, mas foi demonstrado que as vinhas são menos suscetíveis no Botrytis cinereal ou, em outras palavras, podridão cinza. Isso significa uma planta mais saudável sem a necessidade de usar muitos produtos químicos e é provavelmente por isso que ela é escolhida pelos defensores do cultivo biodinâmico. Leia Mais em: "Bush Wines".

Western Cape: a toda poderosa região vinícola sul africana

Localizada a sudoeste da África do Sul, tendo a Cidade do Cabo como ponto central, Western Cape é a principal região vitivinícola do país, responsável por cerca de 90% da produção vinícola do país. Boa parte da indústria do vinho sul-africana se concentra nessa área e microrregiões como Stellenbosch e Paarl são alguns de seus principais destaques. Com terroir bastante diversificado, a combinação do clima mediterrâneo, da geografia montanhosa, das correntes de ar fresco vindas do Oceano Atlântico e da variedade de uvas permite que Western Cape seja considerada uma verdadeira potência da produção de vinhos no país. Suas regiões vinícolas estendem-se por impressionantes 300 quilômetros a partir da Cidade do Cabo até a foz do rio Olifants ao norte, e cerca de 360 quilômetros até a Baía Mossel, a leste – para entender essa grandiosidade, vale saber que regiões vinícolas raramente se estendem por mais de 150 quilômetros.

Western Cape

O clima fresco e chuvoso também favorece o plantio e a colheita por toda a região. Entre os grandes destaques de Western Cape estão as uvas Pinotage, Cabernet Sauvignon e Shiraz, que dão origem a excelentes varietais e blends. Entre os brancos – que, por si só, têm grande reconhecimento mundial –, brilham a Chenin Blanc, uva mais cultivada do país, a Chardonnay e a Sauvignon Blanc. As primeiras vinhas plantadas na região remetem ao século XVII, trazidas por exploradores europeus que se fixaram por lá. Durante vários séculos, fatores como o estilo rudimentar de produção, o Apartheid e a falta de investimentos mantiveram a cultura vitivinícola sul-africana limitada ao próprio país. Somente no início do século XX, com a formação da cooperativa KWV, que a África do Sul começou a responder por todo o controle de qualidade do vinho que se produzia por lá, e seus rótulos passaram a chamar a atenção do mercado internacional, dando início a um processo de exportação que conta, inclusive, com selos de qualidade específicos para a atividade. A proximidade da Cidade do Cabo facilita o acesso dos visitantes às inúmeras rotas vinícolas e turísticas de Western Cape, que incluem experiências como caminhadas, degustações por suas muitas bodegas, além de ótimos restaurantes e hospedagens em suas pequenas e aconchegantes cidades, a maioria em estilo europeu.

Pinotage

A Pinotage foi criada pelo Prof. Abraham Izak Perold, em 1925, cruzando um clone de Pinot Noir com a uva tinta chamada Cinsault (também conhecida como Hermitage). Seu nome vem da união dos dois nomes de origem: Pinot + Hermitage = Pinotage.

Abraham Izak Perold

A uva entrou em evidência a primeira vez, quando em 1959 um vinho produzido com esta cepa foi campeão no Concurso Cape Young Wine Show na Cidade do Cabo. Em 1991, outro vinho produzido somente com Pinotage foi eleito o melhor tinto no Concurso Internacional “Wine & Spirits” em Londres, reforçando a sua imagem de qualidade.

A uva Pinotage produz vinhos tintos com aromas ricos e exóticos, bem diferentes e quase “selvagens”, algumas vezes lembrando borracha. Há exemplares macios e frutados, destacando-se a framboesa e o mirtillo com presença de alcaçuz e leve nuance de fumaça, enquanto outros são densos, estruturados e concentrados, feitos para um longo envelhecimento. Os vinhos da casta Pinotage que possuem corpo mediano são ideais para serem harmonizados com risoto ao funghi e carnes vermelhas, já os encorpados, podem ser acompanhados de queijos maduros e carnes assadas.

A Pinotage é sem dúvida a uva tinta mais emblemática da África do Sul. No entanto, o que muitos não sabem é que atualmente não é ela a uva tinta mais plantada no país, e sim a, tão conhecida, Cabernet Sauvignon. Os vinhedos de Cabernet quase dobraram de tamanho ao longo da última década, chegando a aproximadamente 10% de todas as uvas tintas plantadas no país. Já a Pinotage manteve-se estável, com uma área de aproximadamente 6%. Isto ocorre, principalmente, pelo fato desta cepa não se adaptar em qualquer “terroir” e também por não ser uma uva fácil de domar.

E agora finalmente o vinho!

Na taça apresenta uma lindíssima cor vermelha com predominâncias violetas que traz contornos brilhantes, reluzentes com uma profusão de lágrimas finas e lentas desenhando as paredes do copo.

No nariz traz uma explosão de frutas vermelhas, tais como cereja, morango, framboesa, amoras, com uma nota de flores vermelhas, com um inusitado toque discreto de baunilha.

Na boca é macio, redondo, extremamente frutado, as frutas vermelhas realçam como nas impressões olfativas, mas tem uma persistência em boca, um bom volume que faz com que o vinho tenha certa personalidade típica da casta. Tem um curioso toque de madeira, defumado e tabaco, mas não passa por barricas de carvalho, passa sim 10 meses em tanques de aço inoxidável, para privilegiar as características da cepa, mas fugindo do conceito mais robusto da Pinotage. Taninos macios e acidez na medida, com um final elegante e frutado.

“Amandla!” significa poder nas línguas locais da África Sulista. É normalmente usado para criar um sentimento de unidade e união. O produtor afirma que o vinho traz a lembrança de que a força e a unidade são criadas quando se trabalha junto, simbolizando todas as mãos envolvidas na produção desta garrafa de vinho. Quando falamos, até de forma demasiada, em tipicidade, em terroir, traz a luz quando as mãos que criaram, que conceberam esse vinho, que vem com a cultura de um povo, o amor e o respeito a terra de onde se faz a vindima, todo o detalhe constrói o conceito e a proposta do vinho.

Agora vem a pergunta que não quer calar: Como foi a harmonização das carnes banhadas no feijão manteiga com o Amandla! Pinotage 2019? Digo que, apesar do meu amadorismo nas harmonizações, foi maravilhoso! Uma comida gordurosa, com algum peso para um vinho de médio corpo, com alguma personalidade, típico de toda Pinotage. Mas apesar disso degustei um belo vinho, macio, redondo, como sugere um vinho produzido em vinhas arbustivas que trouxe um Pinotage que fugiu um pouco do peso atribuído a essas castas, com taninos presentes, mas domados, frutados e com uma acidez equilibrada que limpou a boca, clamando por mais e mais garfadas do prato que carinhosamente minha mãe preparou para aglutinar a família e reforçar a necessidade do clamor do vinho pela comida e vice versa. Que possamos nos permitir experimentar, sem visões pré-concebidas e sem ruídos externos desses formadores de opinião que na realidade apenas quer impor o que pensa. Tem 13,5% de teor alcoólico.

Sobre a Marianne Wine Estate & Guesthouse:

Originário de Bordeaux, a família possui 3 propriedades vinícolas, se aproximando da África do Sul graças as suas várias viagens pelo mundo, aportando no sul da África.

O sonho era combinar o Velho e o Novo Mundo para fazer vinhos próximos da da visão de perfeição dos produtores. Portanto, decidiram comprar a Marianne Wine Estate & Guesthouse, uma vinícola boutique de 32 hectares (incluindo 24 em vinhas) localizada no vale Simonsberg em 2004.

A colheita manual, a seleção das melhores uvas, o envelhecimento em carvalho francês e acácia, combinados com um "savoir-faire" francês do enólogo sul-africano Jos Van Wyk, irão levá-lo a explorar alguns dos melhores vinhos produzidos na região.

Mais informações acesse:

http://www.mariannewines.com/

Referências:

“Vinho Capital”: https://vinhocapital.com/tag/wine/page/3/

“Wine”: https://www.wine.com.br/winepedia/enoturismo/western-cape-a-gigante-sul-africana/?doing_wp_cron=1611015613.7245669364929199218750#:~:text=Localizada%20a%20sudoeste%20da%20%C3%81frica,alguns%20de%20seus%20principais%20destaques.

“WineLand”: https://www.wineland.co.za/cultivation-of-bush-vines-in-south-africa-the-current-situation/

“Blog Botilia”: https://blog.botilia.gr/en/bush-vines-en/

“Mistral”: https://www.mistral.com.br/tipo-de-uva/pinotage

“Clube dos Vinhos”: https://www.clubedosvinhos.com.br/quase-indomavel-pinotage/

 

 

 

 


 










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