Sou réu confesso! Nunca me interessei em degustar um vinho
tendo como princípio um prato, uma comida. Essa sempre foi um coadjuvante
diante do protagonismo do vinho e digo mais: nunca fui muito bom em harmonizar
vinho com comida, embora eu acredite humildemente que a harmonização de comida
com vinho é um experimento, parte de alquimia, sempre experimentando, buscando
o paladar, o casamento perfeito, é basicamente aquele que te faz bem, que os
teus sentidos dão um feedback positivo.
Hoje a escolha do vinho se deu por conta de uma comida que vi
minha mãe preparando, um prato que adoro: carnes inundados em um feijão
manteiga. Então pensei: Por que não harmonizar isso tudo com um bom vinho? Com
aquele vinho mais encorpado, haja vista também que estamos passando por um
inverno que, para os parâmetros cariocas, rigoroso. Parecia que tudo conspirava
a favor.
Então me coloquei a observar com carinho na adega, será que
eu encontraria um vinho à altura do meu súbito interesse por uma degustação
hoje? Por que súbito? Não estava no roteiro uma degustação hoje. Ah e precisa
de roteiro? Precisa sim do amor ao vinho e da taça cheia, na hora em que você
quiser e puder.
Depois de uma criteriosa, mas rápida verificação (para os
meus padrões) na adega eis que surgiu a escolha do rótulo e estava muito
eufórico com essa escolha e com o seu propósito: a harmonização com o prato tão
carinhosamente feito pela minha mãe: aquele típico prato dominical em família.
Trata-se um sul africano, uma proeminente região no Novo
Mundo que já se tornou uma referência na produção de grandes vinhos nas suas
mais diversas propostas, a tradição no Novo Mundo, por que não? E melhor, de
uma região especial e que sem sombra de dúvida que foi e será a porta de
entrada de muitos enófilos nos rótulos da terra de Mandela: Western Cape, a
toda poderosa região vitivinícola da África do Sul.
E adivinhem a casta: Pinotage, a cepa autóctone das terras
sul africanas e apesar do óbvio sempre se torna especial quando degusto um
vinho da casta Pinotage. Então sem mais delongas apresento o Vinho que degustei
e gostei que veio, claro, da emblemática região de Western Cape e que se chama
Amandla! Pinotage da safra 2019.
Não é a primeira vez que degustei um vinho dessa linha de
rótulos, tive uma ótima impressão do Amandla! Red Fusion 2019, um blend
explosivo das principais cepas produzidas na África do Sul. Mas neste novo
rótulo eu percebi um detalhe que me chamou a atenção: “Bush Wines”. O que é
isso? Confesso que não conhecia o significado e, como sempre aprendi que temos de
ler cada canto do rótulo para saber o que estamos degustando, me debrucei nas
pesquisas. Falemos de “Bush Wines”, da região de Western Cape e um pouquinho da
ótima casta Pinotage.
“Bush Wines”
O termo em inglês, “Bush Vines” ou “Bush Wines”, pode parecer
distante para muita gente, até mesmo entre especialistas e enófilos, mas,
traduzindo-o, “Vinhas Arbustivas” ou “Vinhos de Arbusto”, o termo pode parecer
mais familiar, contudo, ainda assim, é um conceito distante, sobretudo para os
brasileiros, apesar de termos e palavras populares no dicionário dos
apreciadores da nobre bebida. Mas afinal de contas o que de fato significa
“Vinhas Arbustivas”?
Dependendo do clima, do estilo do vinho, do solo e de outros
fatores, a videira é podada de forma específica e adquire uma formação
especial. A videira arbustiva é, portanto, um estilo de poda que, como o
próprio nome indica, é em forma de arbusto e é um dos estilos de poda mais
antigos do mundo. Geralmente tem um tronco curto e o topo é um tanto irregular
e não como as vinhas de Bordeaux, por exemplo, que têm esse formato em
"T" (cientificamente chamado Double Fuyot).
Mas por que alguém escolheria? Pois bem, com este formato a
videira passa a ter quantas folhas forem necessárias para a sombra, para que o
fruto não queime enquanto ajuda no amadurecimento gradual e adequado das uvas.
Também ajuda a ventilar a videira evitando doenças como o bolor. Diante disso
entende-se que as vinhas de arbusto são ideais para áreas com clima quente e
muito sol, como o Ródano, África do Sul, Austrália e Grécia. Ao mesmo tempo, as
raízes das vinhas arbustivas têm a capacidade de atingir até 20 metros de
profundidade em busca de água. Isso os torna ideais para climas secos, bem como
para áreas onde a irrigação é difícil ou proibida.
Por outro lado, as vinhas arbustivas também apresentam
algumas desvantagens. O mais importante deles é a incapacidade de realizar a
colheita mecânica. Como resultado, é preciso muito mais trabalho (e dinheiro) e
tempo para colher as uvas. Além disso, apresentam rendimentos mais baixos, o
que em combinação com o anterior conduz a uma perda de dinheiro para o produtor
(a menos que consiga vender os seus vinhos a um preço superior).
E de acordo com essa desvantagem o cenário das videiras
arbustivas tem declinado nas regiões de Stellenbosch, Malmesbury e Paarl,
regiões emblemáticas de produção de vinhos na África do Sul, segundo dados
apresentados em 1991, por Archer, do Departamento de Viticultura e Enologia da
Universidade de Stellenbosch. Na área de Stellenbosch, a porcentagem de
videiras sendo cultivadas como videiras arbustivas diminuíram de 59% em 1971
para 38% em 1979 e 30% em 1987. De acordo com os dados de bloco SAWIS de 2012,
23% (excluindo blocos de um ano de idade) da superfície plantada com videiras
em Stellenbosch foi cultivada como vinhas. Estima-se que 80 a 90% das uvas para
vinho no distrito de Malmesbury (Swartland) eram cultivadas como vinhas no
final da década de 1980 (Archer, 1991). Os dados de bloco SAWIS mais recentes
mostram que 47% das videiras nesta área não são gradeadas.
Um dos motivos para o afastamento das vinhas de arbusto é
provavelmente o objetivo de maiores produções viabilizado por sistemas de
treliça, em conjunto com a maior disponibilidade de água para irrigação. Além
disso, o foco na mecanização é cada vez maior e o fato de os processos de poda
e colheita em cipós não poder ser mecanizado, impacta nas considerações dos
produtores no momento do estabelecimento.
O cultivo de uvas para vinho como vinhas de arbustos diminuiu
e espera-se que diminua ainda mais como resultado da crescente pressão para
mecanizar. Os produtores também devem buscar uma alta produção unitária, o que
só é possível por meio de sistemas de treliça maiores (superfície foliar).
No entanto, as trepadeiras arbustivas continuam a ser uma
opção em terrenos de menor rendimento (por exemplo, terras secas com teor de
umidade do solo suficiente), onde um sistema caro de treliça não garante
necessariamente produções mais altas. Muitas vezes, esse terreno permite
videiras equilibradas com crescimento e produção moderados, a partir dos quais
vinhos concentrados e de alta qualidade podem ser feitos. O desafio é,
portanto, encontrar valor para esses vinhos nos mercados. Só então a icônica videira
do mato será capaz de permanecer uma parte sustentável de nossa paisagem de
vinhedos.
Alguns ligam as vinhas de arbusto ao cultivo biodinâmico e a
vinhos de qualidade. Esta ligação não foi cientificamente comprovada, mas foi
demonstrado que as vinhas são menos suscetíveis no Botrytis cinereal ou, em
outras palavras, podridão cinza. Isso significa uma planta mais saudável sem a
necessidade de usar muitos produtos químicos e é provavelmente por isso que ela
é escolhida pelos defensores do cultivo biodinâmico. Leia Mais em: "Bush Wines".
Western Cape: a toda poderosa região vinícola sul africana
Localizada a sudoeste da África do Sul, tendo a Cidade do
Cabo como ponto central, Western Cape é a principal região vitivinícola do
país, responsável por cerca de 90% da produção vinícola do país. Boa parte da
indústria do vinho sul-africana se concentra nessa área e microrregiões como
Stellenbosch e Paarl são alguns de seus principais destaques. Com terroir
bastante diversificado, a combinação do clima mediterrâneo, da geografia
montanhosa, das correntes de ar fresco vindas do Oceano Atlântico e da
variedade de uvas permite que Western Cape seja considerada uma verdadeira
potência da produção de vinhos no país. Suas regiões vinícolas estendem-se por
impressionantes 300 quilômetros a partir da Cidade do Cabo até a foz do rio
Olifants ao norte, e cerca de 360 quilômetros até a Baía Mossel, a leste – para
entender essa grandiosidade, vale saber que regiões vinícolas raramente se
estendem por mais de 150 quilômetros.
O clima fresco e chuvoso também favorece o plantio e a
colheita por toda a região. Entre os grandes destaques de Western Cape estão as
uvas Pinotage, Cabernet Sauvignon e Shiraz, que dão origem a excelentes
varietais e blends. Entre os brancos – que, por si só, têm grande
reconhecimento mundial –, brilham a Chenin Blanc, uva mais cultivada do país, a
Chardonnay e a Sauvignon Blanc. As primeiras vinhas plantadas na região remetem
ao século XVII, trazidas por exploradores europeus que se fixaram por lá. Durante
vários séculos, fatores como o estilo rudimentar de produção, o Apartheid e a
falta de investimentos mantiveram a cultura vitivinícola sul-africana limitada
ao próprio país. Somente no início do século XX, com a formação da cooperativa
KWV, que a África do Sul começou a responder por todo o controle de qualidade
do vinho que se produzia por lá, e seus rótulos passaram a chamar a atenção do
mercado internacional, dando início a um processo de exportação que conta,
inclusive, com selos de qualidade específicos para a atividade. A proximidade
da Cidade do Cabo facilita o acesso dos visitantes às inúmeras rotas vinícolas
e turísticas de Western Cape, que incluem experiências como caminhadas,
degustações por suas muitas bodegas, além de ótimos restaurantes e hospedagens
em suas pequenas e aconchegantes cidades, a maioria em estilo europeu.
Pinotage
A Pinotage foi criada pelo Prof. Abraham Izak Perold, em
1925, cruzando um clone de Pinot Noir com a uva tinta chamada Cinsault (também
conhecida como Hermitage). Seu nome vem da união dos dois nomes de origem:
Pinot + Hermitage = Pinotage.
A uva entrou em evidência a primeira vez, quando em 1959 um
vinho produzido com esta cepa foi campeão no Concurso Cape Young Wine Show na
Cidade do Cabo. Em 1991, outro vinho produzido somente com Pinotage foi eleito
o melhor tinto no Concurso Internacional “Wine & Spirits” em Londres,
reforçando a sua imagem de qualidade.
A uva Pinotage produz vinhos tintos com aromas ricos e exóticos,
bem diferentes e quase “selvagens”, algumas vezes lembrando borracha. Há
exemplares macios e frutados, destacando-se a framboesa e o mirtillo com
presença de alcaçuz e leve nuance de fumaça, enquanto outros são densos,
estruturados e concentrados, feitos para um longo envelhecimento. Os vinhos da
casta Pinotage que possuem corpo mediano são ideais para serem harmonizados com
risoto ao funghi e carnes vermelhas, já os encorpados, podem ser acompanhados
de queijos maduros e carnes assadas.
A Pinotage é sem dúvida a uva tinta mais emblemática da
África do Sul. No entanto, o que muitos não sabem é que atualmente não é ela a
uva tinta mais plantada no país, e sim a, tão conhecida, Cabernet Sauvignon. Os
vinhedos de Cabernet quase dobraram de tamanho ao longo da última década,
chegando a aproximadamente 10% de todas as uvas tintas plantadas no país. Já a
Pinotage manteve-se estável, com uma área de aproximadamente 6%. Isto ocorre,
principalmente, pelo fato desta cepa não se adaptar em qualquer “terroir” e também
por não ser uma uva fácil de domar.
E agora finalmente o vinho!
Na taça apresenta uma lindíssima cor vermelha com
predominâncias violetas que traz contornos brilhantes, reluzentes com uma
profusão de lágrimas finas e lentas desenhando as paredes do copo.
No nariz traz uma explosão de frutas vermelhas, tais como
cereja, morango, framboesa, amoras, com uma nota de flores vermelhas, com um
inusitado toque discreto de baunilha.
Na boca é macio, redondo, extremamente frutado, as frutas vermelhas realçam como nas impressões olfativas, mas tem uma persistência em boca, um bom volume que faz com que o vinho tenha certa personalidade típica da casta. Tem um curioso toque de madeira, defumado e tabaco, mas não passa por barricas de carvalho, passa sim 10 meses em tanques de aço inoxidável, para privilegiar as características da cepa, mas fugindo do conceito mais robusto da Pinotage. Taninos macios e acidez na medida, com um final elegante e frutado.
“Amandla!” significa poder nas línguas locais da África Sulista. É normalmente usado para criar um sentimento de unidade e união. O produtor afirma que o vinho traz a lembrança de que a força e a unidade são criadas quando se trabalha junto, simbolizando todas as mãos envolvidas na produção desta garrafa de vinho. Quando falamos, até de forma demasiada, em tipicidade, em terroir, traz a luz quando as mãos que criaram, que conceberam esse vinho, que vem com a cultura de um povo, o amor e o respeito a terra de onde se faz a vindima, todo o detalhe constrói o conceito e a proposta do vinho.
Agora vem a pergunta que não quer calar: Como foi a harmonização das carnes banhadas no feijão manteiga com o Amandla! Pinotage 2019? Digo que, apesar do meu amadorismo nas harmonizações, foi maravilhoso! Uma comida gordurosa, com algum peso para um vinho de médio corpo, com alguma personalidade, típico de toda Pinotage. Mas apesar disso degustei um belo vinho, macio, redondo, como sugere um vinho produzido em vinhas arbustivas que trouxe um Pinotage que fugiu um pouco do peso atribuído a essas castas, com taninos presentes, mas domados, frutados e com uma acidez equilibrada que limpou a boca, clamando por mais e mais garfadas do prato que carinhosamente minha mãe preparou para aglutinar a família e reforçar a necessidade do clamor do vinho pela comida e vice versa. Que possamos nos permitir experimentar, sem visões pré-concebidas e sem ruídos externos desses formadores de opinião que na realidade apenas quer impor o que pensa. Tem 13,5% de teor alcoólico.
Sobre a Marianne Wine Estate & Guesthouse:
Originário de Bordeaux, a família possui 3 propriedades
vinícolas, se aproximando da África do Sul graças as suas várias viagens pelo
mundo, aportando no sul da África.
O sonho era combinar o Velho e o Novo Mundo para fazer vinhos
próximos da da visão de perfeição dos produtores. Portanto, decidiram comprar a
Marianne Wine Estate & Guesthouse, uma vinícola boutique de 32 hectares
(incluindo 24 em vinhas) localizada no vale Simonsberg em 2004.
A colheita manual, a seleção das melhores uvas, o
envelhecimento em carvalho francês e acácia, combinados com um "savoir-faire"
francês do enólogo sul-africano Jos Van Wyk, irão levá-lo a explorar alguns dos
melhores vinhos produzidos na região.
Mais informações acesse:
Referências:
“Vinho Capital”: https://vinhocapital.com/tag/wine/page/3/
“WineLand”: https://www.wineland.co.za/cultivation-of-bush-vines-in-south-africa-the-current-situation/
“Blog
Botilia”: https://blog.botilia.gr/en/bush-vines-en/
“Mistral”: https://www.mistral.com.br/tipo-de-uva/pinotage
“Clube dos Vinhos”: https://www.clubedosvinhos.com.br/quase-indomavel-pinotage/
Nenhum comentário:
Postar um comentário