A Espanha possui a maior área cultivada de vitis vinífera do
planeta, embora em volume de produção ocupe a terceira posição. Ou seja, uma
região que tem a maior área cultivada de uvas finas do mundo merece desbravar,
nós merecemos buscar aquelas regiões pouco badaladas e não ficar naquela
temível zona de conforto com as famosas Rioja e Ribera del Duero, por exemplo.
Trata-se de um amplo território o qual nos presentei, ano
após ano, com vinhos exuberantes e de grande personalidade. E nesses últimos
quatro ou cinco anos aproximadamente venho descobrindo, redescobrindo,
conhecendo “novas” regiões na Espanha me possibilitando, a cada rótulo
degustado, novos prazeres sensoriais e histórias de tirar o fôlego.
É que muitas regiões ainda preferem manter uma espécie de
“anonimato”, dedicando a sua produção ao consumo regional, porém outras regiões
dedicam esforços incansáveis no sentido de promoção, de difusão de seus vinhos,
de seu terroir, com suas castas autóctones, com a tipicidade de seus vinhos e
as melhorias em seu processo produtivo e um exemplo latente é Utiel-Requena.
Atualmente nosso mercado tem sido “invadido” por rótulos
dessa região, sendo ofertado nos principais e-commerces
do país com valores extremamente atraentes, causando, lamentavelmente certas
rejeições, afinal ainda existe um terrível preconceito entre os enófilos de que
vinhos baratos estão associados à baixa qualidade.
Mas como comprar vinhos é sempre assumir riscos eu decidi
investir em vinhos dessa região e tenho tido excelentes surpresas, rótulos
muito bons, de tipicidade, de qualidade mesmo, a relação custo X benefício vem
imperando nas aquisições.
A casta tinta que predomina além, é claro, da Tempranillo é a
Bobal. Ainda é pouco conhecida no Brasil, mas também existe um ceticismo em
aceita-la ou ao menos experimentá-la. Como tenho, como disse, desbravado o
universo vasto do vinho e mais precisamente dos vinhos espanhóis que vinha
negligenciando há alguns anos, me permiti experimentar.
A minha primeira experiência foi com o vinho Bobal de SanJuan da safra 2016 e já de imediato me conquistou pela sua vivacidade, elegância,
frescor, intensidade aromática e personalidade. Evidente que não iria parar por
aqui e decidi continuar em busca de novos rótulos que levasse a Bobal.
Veio a Bobal dividindo o protagonismo com a Tempranillo do
belíssimo Valtier Reserva da safra 2013, que degustei com oito anos de garrafa
e estava maravilhoso, com plenitude e vivacidade, que certamente teria alguns
anos mais em evolução.
Depois segui com mais uma nova experiência com a Bobal
protagonizando solitária, com um vinho de abordagem mais jovem, frutada de um
produtor que adoro chamado Murviedro, o DNA Murviedro Bobal 2018. O nome
entregou firmemente o seu terroir que já se estabelecia em minhas predileções
sensoriais.
E hoje decidi subir alguns degraus de características e
propostas e, mais uma vez, degustar a Bobal solitariamente, porém com passagens
por barricas de carvalho. É uma nova abordagem da Bobal que não preciso dizer o
quão estou animado para ter em minha humilde taça.
Então vamos às apresentações! O vinho que degustei e gostei
veio, claro, da região espanhola de Utiel-Requena e se chama Expresión Bobal,
um reserva da safra 2016. E para a minha alegria o rótulo também é da vasta
linha de vinhos da Bodega Murviedro, algo mais para abrilhantar essa degustação
espetacular. Mas antes de tecer, com requintes de detalhes, comentários do
vinho, vamos de história, vamos de Utiel-Requena e da Bobal.
Utiel-Requena
Recentemente, foram descobertos registros arqueológicos que
comprovam que, desde o século V a.C., era praticada a vitivinicultura na região
de Utiel-Requena. Sítios arqueológicos como El Molón, em Camporrobles, Las
Pilillas, em Requena e Kelin, em Caudete atestam o passado vinícola da região.
Quando do domínio romano sobre a região, estes introduziram novas técnicas de
vinificação, propiciando a melhora dos vinhos ali produzidos.
Utiel-Requena têm sua história também ligada ao período
conhecido como Reconquista: a retomada, a partir do século VIII, do controle
europeu dos territórios da Península Ibérica, dominados pelos árabes (mouros)
desde o século VI. Muitas das cidades da região foram fundadas e/ou possuem
grande influência islâmica em suas construções, bem como vestígios de
fortalezas e construções mouras, como a cidade de Chera, por exemplo.
Em 1238, a região cai sob o domínio do reino de Castela. No
século seguinte, após conflitos envolvendo este reino e seu vizinho, Aragão,
ocorre a união entre a rainha Isabel (Castela) e Fernando (Aragão), conhecidos
como os Reis Católicos, e, após a conquista dos demais reinos ibéricos por
estes (exceto Portugal), constitui-se o Reino da Espanha. Utiel-Requena,
consequentemente, torna-se domínio espanhol.
Durante o século XIX, eclodem na Espanha as Guerras
Carlistas, que dividem a população espanhola entre os partidários do
absolutismo e do liberalismo; reflexo de outras manifestações do mesmo cunho
ocorridas Europa afora. Utiel (absolutista) e Requena (liberal), assim como as
demais cidades da região, assumem posições antagônicas, situação somente
resolvida com a conclusão da Primeira Guerra Carlista.
Utiel-Requena localiza-se na porção leste do território
espanhol, dentro da província de Valencia. Situa-se numa zona de transição
entre a costa mediterrânea e os platôs da região da Mancha. Seus vinhedos
localizam-se predominantemente entre os rios Turia e Cabriel.
A região possui um dos climas mais severos de toda a Espanha.
Os verões costumam ser longos e quentes (máximas por vezes de 40 graus),
enquanto os invernos são muito frios, com ocorrência frequente de geadas e
granizo (mínimas podem chegar a -10 graus).
No entanto, as vinhas encontram-se adaptadas a tais rigores e
oscilações e, como atenuante, sopra do Mar Mediterrâneo o Solano, vento frio
que ajuda a suavizar o efeito dos quentes verões da região. O solo possui cor
escura, de natureza calcária e pobre em matéria orgânica.
Utiel-Requena é uma DOP (Denominación de Origen Protegida –
Denominação de Origem Protegida) pertencente a Comunidad Valenciana, a qual
possui certa autonomia em relação ao governo central espanhol. Não possui
sub-regiões.
Tradicionalmente, Utiel-Requena é a terra da Bobal, cepa
tinta autóctone (originária da região) bastante adaptada aos rigores do clima
da região. Ocupa 75% da superfície total dos vinhedos, também sendo bem
adaptada ao calcário típico do seu solo.
São produzidos rosés e tintos, em sua maioria varietais,
desta cepa; os primeiros costumam ser muito aromáticos, remetendo geralmente a
frutas negras e muito frescos no paladar. Os tintos, por sua vez, geralmente
são muito bem estruturados e potentes, com aromas de frutas maduras,
especiarias e notas de couro.
Possuem bom potencial de envelhecimento. Uma curiosidade:
quando da expansão da filoxera pelo continente europeu, as vinhas de Bobal
demonstraram grande resistência à praga, ao contrário da maior parte do vinhedo
do continente, o que permitiu à região manter por algum tempo as plantações sem
a enxertia com a videira americana, e também propiciou um grande aumento das
vendas e exportações de seus vinhos, avidamente procurados por consumidores
“puristas”, em busca de vinhos oriundos de videiras sem a enxertia.
Também se faz presente a cepa Tempranillo, plantada em cerca
de 12% das vinhas da região. Outras cepas tintas permitidas pela legislação:
Garnacha (Grenache) Tinta, Garnacha Tintorera, Cabernet Sauvignon, Mertlot,
Syrah, Pinot Noir, Petit verdot e Cabernet Franc.
Diante da predominância tinta, naturalmente a participação
das vinhas brancas na composição da denominação é baixa: cerca de 6%. A cepa
mais cultivada é a também autóctone Tardana, de amadurecimento tardio. Produz
vinhos de cor amarela, pálidos com reflexos dourados. Os aromas geralmente
remetem a frutas como abacaxi e maçã. Frescos e equilibrados no paladar,
costumam ser bem estruturados e de boa persistência na boca. Outras variedades
brancas plantadas são: Macabeo, Merseguera, Chardonnay, Sauvignon Blanc,
Parellada, Verdejo e Moscatel de grano menudo.
Bobal
As primeiras notícias da Bobal datam do século XIV. Da costa
de Valência, esta uva estabeleceu-se com sucesso em outras regiões do interior
da Espanha. Lugares como Utiel-Requena, Ribera e Manchuela, todas Denominação
de Origem Controlada, tem a Bobal como uma das suas principais variedades,
chegando seu cultivo ser quase que majoritário.
A Bobal é pouco cultivada fora da Espanha, há plantações dela
nas regiões de Languedoc-Roussillon, no sul da França, e da Sardenha, na
Itália. Dentro dessas regiões é também conhecida por requena, espagnol,
benicarlo, provechón, valenciana, carignan d’espagne, balau, requenera,
requeno, valenciana tinta ou bobos. Seu nome é derivado da palavra latina Bovale, que significa touro, e refere-se
à semelhança que os seus cachos têm com a cabeça de um touro.
É uma uva de porte médio para grande, com bagos redondos e
cheios de sumo; além disso, apresentam quantidade razoável de taninos e sabores
de chocolate e frutos secos. Seus cachos, por sua vez, são muito grandes, bem
compactados e pesados.
Dá-se muito bem com climas mediterrâneos. Elabora diferentes
tipos de vinhos, com especial destaque para os vinhos rosés, sempre jovens, com
muita cor e com boa acidez; a Bobal ainda é responsável pelos aromas frutados
destas bebidas. Os tintos desta uva são pouco alcoólicos, mas muito saborosos,
vinhos de coloração cereja escura profunda e boa estrutura de taninos.
Por sua versatilidade e acidez adequada, a Bobal pode ainda
ser ainda utilizada para produzir espumantes. As peles grossas de Bobal têm uma
elevada quantidade de uma substância que dá cor intensa aos vinhos, bem como
presenteia a bebida com uma presença importante de taninos finos, esse é um dos
motivos que tem dado a esta uva um destaque especial na produção espanhola,
principalmente na região de Manchuela, cujo status de Denominação de Origem deu
respaldo ao cultivo da Bobal e aos os vinhos elaborados com ela frente ao
mercado interno e externo.
E agora finalmente o vinho!
Na taça apresenta um rubi intenso, quase escuro, com halos
granada, talvez pelo tempo de garrafa, sete anos, ou pela passagem por barricas
de carvalho, com lágrimas finas, lentas e em profusão com alguma viscosidade.
No nariz é muito aromático e entrega aromas de frutas negras
e vermelhas maduras com destaque para cereja, framboesa, morango, bem
compotado, com notas amadeiradas evidentes, graças aos doze meses em barricas
de carvalho, mas muito bem integrado, com toques de coco queimado, baunilha,
chocolate e algo de herbáceo, de grama cortada.
Na boca é seco, mas saboroso, intenso, complexo, estruturado,
cheio, bom volume de boca, alcoólico, com as frutas maduras protagonizando,
como no aspecto olfativo, bem como as notas amadeiradas, em destaque, mas em
plena convergência com a fruta mostrando equilíbrio. Os taninos são presentes,
marcados, imponentes, mas domados, maduros, com acidez incrivelmente vívida,
salivantes o que surpreende no auge dos sete anos de garrafa. O chocolate,
tostado, a baunilha também aparecem, com um final de média persistência.
Definitivamente o nome do vinho expressa fielmente o que o
vinho entrega na taça: “Expresión”. A Murviedro foi muito feliz e tocada pela
inspiração ao conceder tal nome a este rótulo complexo, de um vinho de explosão
aromática, com as notas frutadas gritando, com notas amadeiradas bem integradas
ao vinho, com o paladar guloso, cheio, poderoso, cheio de personalidade, mas
elegante, austero e macio. A Bobal pode proporcionar versatilidade com notas
complexas e de personalidade, mas ser fácil de degustar, agradável. O céu é o
limite para a Bobal, para Utiel-Requena que, a cada experiência, se torna
agradável e especial. Tem 13,5% de teor alcoólico.
Sobre a Bodega Murviedro:
Bodegas Murviedro foi fundada em Valência em 1927, a
princípio como filial espanhola do Grupo Swiss Schenk, que cresceu e se tornou
uma das vinícolas mais importantes da região.
A Schenk España decide então, em 1931, concentrar as suas
atividades na adega de Valência, o que, localizado junto ao porto, significou o
início de um dos principais pilares da marca: a exportação.
Posteriormente, já em 2002, a empresa aproveita ao máximo as
comemorações do 75º aniversário ao mudar seu nome para ‘Bodegas Murviedro’ em
homenagem ao seu vinho Cavas Murviedro, uma das marcas de vinho mais
emblemáticas da Comunidade Valenciana, o que fez de Murviedro uma das vinícolas
mais renomadas.
A vinícola, desde que começou as suas atividade, sempre teve
acesso a uma ampla variedade de castas indígenas e internacionais e produzem um
amplo portfólio de estilos de vinho.
A filosofia da empresa baseia-se na combinação de modernas técnicas de vinificação com uvas de vinhas tradicionais para atender aos mais altos padrões internacionais de qualidade, mantendo seu caráter espanhol assim como a originalidade.
Mais informações acesse:
Referências:
“Clube dos Vinhos”: https://www.clubedosvinhos.com.br/os-prazeres-da-uva-bobal/
Blog “O Mundo e o Vinho”: http://omundoeovinho.blogspot.com/2015/11/utiel-requena.html
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