É estranho um vinho fazer parte da nossa história enófila,
mas que nunca tinha degustado. Não, não estou embriagado, entorpecido pelas
taças que estou degustando, essas linhas iniciais do meu texto são coerentes e
consistentes em minha história que conta com mais de vinte anos sem ao menos
ter derramado uma gota do rótulo de hoje em minhas taças. Explico! Em minhas
inúmeras e necessárias incursões nos supermercados eu sempre passei por esse
vinho, mas nunca o comprei. Sempre tive as minhas preferências, principalmente
em meu momento de transição dos vinhos de mesa para os vinhos de castas
vitiviníferas, onde criei, por alguns rótulos, uma espécie de vínculo
emocional, porém, pelo vinho de hoje eu nunca comprei, eu nunca degustei,
apesar de saber da sua existência. Não sou capaz de responder a esse
questionamento. Sempre tiveram um valor competitivo, era, e ainda é, um dos
vinhos chilenos mais vendidos no Brasil, com uma boa aceitação e uma
popularidade edificada que vem desde aqueles tempos em que eu estava descobrindo
os vinhos pelas quais sou um apaixonado nos dias de hoje.
E o dia em que se deu a minha compra eu buscava um vinho com
um precinho camarada, com um valor que cabia no meu bolso naquele momento, um
vinho cuja casta expressasse toda a importância para o terroir de um país,
sintetizasse a cultura de um povo e que tivesse, consequentemente o DNA de um
pais em todas as suas nuances. A primeira etapa eu atingi: queria degustar um
legítimo Carménère chileno, mas um vinho básico para tentar corroborar a história
deste país com a casta onde a maioria dos vinhos são especiais, em todas as
suas propostas. Então fui garimpar. Apesar da Carménère ser um vinho extramente
popular no Chile e no Brasil não é das tarefas mais fáceis, pelo menos para
mim, encontrar um legítimo 100% Carménère, apesar de constar estampado o nome
da cepa na maioria dos rótulos, geralmente são cortes, blends e essa era minha
outra intenção: Um 100% Carménère! As minhas incursões nos supermercados surtiu
efeito e me deparei com aquele vinho que, por mais de 20 anos, eu não comprei.
O levei para casa sem hesitar, afinal, sentia que tudo conspirava a meu favor e
todas as minhas pretensões de compra estavam convergindo para esse rótulo. O
vinho que degustei e gostei vem da emblemática, famosa e tradicional região
chilena do Vale Central e é o Gato Negro da casta Carménère e a safra é de
2019. E aqui vale uma curiosidade: o nome “Gato Negro” partiu de uma história
de uma degustação em uma vinícola alemã entre enólogos que decidiam entre três
tipos de barricas, e inesperadamente foram surpreendidos por um “schwartze
katze” (gato negro) que saltou em uma delas e então a barrica foi escolhida. E
inspirada nessa história a Viña San Pedro, produtor do vinho, batizou sua linha
de vinhos mais leves, macios, frutados e fáceis de degustar. E já que falei de
histórias, falemos um pouco sobre a história da casta Carménère no Chile.
O Chile e a Carménère
Por muito tempo, lá na França, principalmente pelas
propriedades de Bordeaux, a Carménère, amplamente cultivada nas regiões do
Medoc e de Graves, e a Merlot eram cultivadas juntas, até por terem um tempo de
amadurecimento bastante parecido. Tornou-se extremamente tradicional em Bordeaux
e em outros cortes franceses até que no fim do século 19, chegou a praga Filoxera
e devastou os vinhedos da França. Foi aí que muitos enólogos e agrônomos
trouxeram castas europeias para a América na tentativa de recuperá-las. Foi
então que a Carménère chegou ao Chile confundida com a Merlot – além de serem
fisicamente parecidas, a Carménère, como era colhida junto com a Merlot, também
ganhava notas herbáceas. E durante anos a fio as duas foram plantadas,
vinificadas e consumidas como se fossem a mesma. Até que alguns enólogos no
Chile começaram a perceber que algumas vinhas de “Merlot” demoravam mais para
amadurecer e decidiram fazer análises comparativas. Só então se descobriu que
eram uvas diferentes e as notas verdes e os taninos duros da Carménère só se
destacavam tanto porque ela estava sendo colhida no tempo errado, é uma uva de
maturação mais tardia do que a Merlot. Isso aconteceu na década de 1980, mas em
1994 o ampelógrafo francês Jean-Michel Boursiquot disse que o “Merlot” chileno
não era nada mais nada menos que “Carménère”. Finalmente, com uma sofisticada
análise de DNA, Boursiquot confirmou sua importante revelação. Esta notícia, de
grande impacto no mundo do vinho, foi o ponto de partida para levar a Carménère
para o que ela é hoje: um símbolo do vinho chileno. Descoberto o potencial da
cepa no Chile, alguns enólogos começaram a trabalhá-la de maneira tão cuidadosa
e eficiente que hoje o país detém alguns dos melhores exemplares de Carménère,
enquanto lá na França raramente se vê um rótulo com ela.
E agora o vinho!
Na taça apresenta um vermelho rubi intenso com reflexos
violáceos, com uma grande concentração de lágrimas, mas que rapidamente se
dissipam das paredes do copo.
No nariz uma explosão de aromas adocicados muito agradável, com
toques vegetais, de pimentão verde, talvez, além de especiarias. Não podemos
negligenciar as notas frutadas, de frutas negras maduras, como amora, ameixa.
Na boca é macio, fácil de degustar, mas que, ao mesmo tempo,
revela alguma personalidade, com taninos finos e moderados, com acidez média,
que entrega algum frescor e jovialidade, com um discreto tostado, o que se deduz
uma curta passagem por barricas de carvalho, que não foi informado pelo
produtor em sua página na internet, talvez três ou quatro meses de passagem por
madeira. Final de média persistência com retrogosto frutado.
Vinte anos em um dia de degustação! E foi tão prazeroso! A
revelação mais expressiva da Carménère chilena, na sua mais nobre e simples
versão. Nunca é tarde para um enófilo, com o espírito da descoberta e do
garimpo, conhecer novos rótulos, Um vinho com todas as características marcantes
da cepa. É um típico Carménère sim, sem nenhuma grande novidade, mas correto,
bem feito, honesto e com um excelente custo X benefício, um vinho que personifica
a história, o terroir, a cultura da casta no Chile. Um vinho que sem sombra de
dúvida entregou muito mais do que valeu, que grata surpresa positiva. O atraso
do tempo, se é que podemos mensurá-lo, foi reparado no dia de hoje com uma
celebração com uma bela degustação. O vinho com excelente vocação gastronômica
pode harmonizar facilmente com carnes grelhadas, massas bem condimentadas e
queijos mais expressivos. Hoje o harmonizei com um belo queijo mussarela.
Um vinho frutado, expressivo, com alguma contundência em
boca, com um paladar saboroso e com seus 13,5% de teor alcoólico bem integrados
com o conjunto do vinho.
Sobre a Viña San Pedro:
A Viña San Pedro foi fundada em 1865 no Vale do Curicó pelos
irmãos Correa. Hoje, mais de 150 anos depois, ainda chamamos este vale de lar. Os
irmãos foram os pioneiros em trazer diferentes variedades do Velho Continente
para o Vale. San Pedro é hoje um dos vinhedos mais importantes do Chile e um
dos exportadores mais importantes do país, presente em mais de 80 países ao
redor do mundo. Em 2002 foi fundada uma vinícola especial com foco em vinhos
finos, localizada no Vale Cachapoal dos Andes, aos pés da Cordilheira dos
Andes. Lá são feitos os cinco vinhos finos de Altair, Cabo de Hornos, Sideral,
Kankana del Elqui e Tierras Moradas.
San Pedro mantém os melhores vinhedos por meio da vinificação
sustentável e inovadora, explorando corajosamente os ricos solos para manter um
portfólio diversificado e amplo, produzindo os melhores vinhos para milhões em
todo o mundo.
Mais informações acesse:
Referências de pesquisa:
Portal Gazeta on Line, em: https://blogs.gazetaonline.com.br/vinhosemaisvinhos/2011/06/incrivel-historia-da-carmenere-no-chile.html#:~:text=As%20uvas%20Carmen%C3%A8re%20foram%20introduzidas,dos%20anos%20sempre%20amadurecia%20tardiamente.
Blog Grand
Cru, em: https://blog.grandcru.com.br/vinho-chile-carmenere-uva-tinta-bom-barato/
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