Digo e não me canso de repetir sempre: O universo do vinho é
vasto e inexplorado. E essa máxima reforça, corrobora o quanto estar nele,
viajar nele, é fantástico. Reafirma a nossa condição de enófilo, pois nos
estimula a garimpar novas regiões, novas castas, novas histórias, novas
experiências sensoriais e tudo isso aliado ao contato com culturas e
manifestações comportamentais que afetam diretamente na condição de vinificar
os rótulos que chegam às nossas mesas.
Essa condição na altura da minha vida de simples e humilde
enófilo se tornou essencial, necessário, quase que algo orgânico, que não pode
faltar ao funcionamento de meu corpo. Tenho me empenhado, de forma latente, na
busca de novos rótulos, de novas castas, de novos terroirs, de novas
experiências.
Sempre ouvi dizer que São Paulo sempre foi uma região
proeminente na produção de vinhos e mais, com certo protagonismo para a
história vitivinícola brasileira. Mas nunca parei para pensar na dimensão dessa
informação, na relevância disso tudo e consequentemente nunca me atentei para a
possibilidade de degustar quaisquer vinhos das regiões contempladas pela
natureza nas terras paulistas.
E o meu primeiro contato com os vinhos de São Paulo se deu de
uma forma totalmente ocasional e despretensiosa. Estava eu acessando as minhas
redes sociais e me deparei com uma publicação um tanto quanto atípica para mim
e estava relacionado aos vinhos artesanais ou a vinhos produzidos por pequenas
e médias vinícolas com baixa produção. Aquilo fora como se amor à primeira vista,
dado o tamanho do interesse que me tomou como um arrebatamento.
Diante do tamanho do interesse decidi procurar detalhes sobre
o vinho mencionado e como qualquer coisa que colocamos na grande rede para
pesquisar, uma coisa vai puxando a outra, porém dentro do contexto. Até que
cheguei a um site que vende vinhos de uma região famosa do interior de são
Paulo conhecida como “a terra do vinho”, chamada São Roque! Havia outras
regiões também, como Serra Negra, por exemplo. Além do interesse instigante de
novos terroirs, a degustação de vinhos artesanais e produzidos por pequenas
vinícolas me atraía de uma forma visceral e implacável. Decidi comprar três
rótulos e não demorei em selecionar um para degustar o quanto antes, tamanho é
o interesse para tê-los em minha taça.
Então o momento chegou e a animação virou ansiedade, estava
tomado por uma exaltação salutar, precisava degustar um vinho como esse, com
essa proposta. E o vinho que degustei e gostei veio da região paulistana,
brasileira, de São Roque e se chama Dom Bernardino e a casta é a famosa
lusitana Touriga Nacional da safra 2018. A casta veio do Sul, a região de São
Roque ainda não tem clima para produzir castas vitis vinífera, mas foi
vinificado sobre os preceitos, a filosofia da vinícola Bella Aurora que, apesar
de pequena, goza de uma tradição de 85 anos de vida. Então antes de falarmos do
vinho e da história da vinícola, falemos um pouco de São Roque.
São Roque: “A terra do vinho”
A cidade de São Roque foi fundada no dia 16 de agosto de
1657, mas começou como uma grande fazenda do capitão paulista Pedro Vaz de
Barros, que pertencia a uma família de bandeirantes e sertanistas. Vaz de
Barros também participou de diversas Bandeiras. O fundador da cidade, também
conhecido como Vaz Guaçú, contava com aproximadamente 1.200 índios que
trabalhavam em suas terras, onde eram cultivados trigo e uva. Alguns anos após
a morte de Vaz de Barros, seu irmão, Fernão Paes de Barros, se estabeleceu na
mesma região, onde construiu uma casa e uma capela, que foram restauradas em
1945 pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a pedido do
escritor Mário de Andrade, dono da propriedade.
Na região de São Roque, podem-se identificar referências à
vitivinicultura desde a sua fundação, por volta do final do século XVII. Conforme
informações encontradas e divulgadas pelos moradores da cidade, através da
tradição oral, ou mesmo citado pelo Professor Joaquim Silveira dos Santos em
seu artigo para a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo,
volume XXXVII, nessa época toda a região pertencia a apenas três grandes
proprietários de terras: Pedro Vaz de Barros, seu irmão Fernão Paes de Barros e
o padre Guilherme Pompeu de Almeida, sendo que Pedro Vaz (tido como o fundador
da cidade) se estabeleceu próximo da atual igreja Matriz, seu irmão mais ao
norte, onde até hoje ainda se encontra a casa grande e capela Santo Antônio, e
por fim a fazenda do padre Guilherme Pompeu se encontrava na hoje atual cidade
de Araçariguama que faz divisa com Santana do Parnaíba.
Portanto realmente não se podem esperar grandes referências
desse período da história, afinal o Brasil era apenas uma colônia e que
existiam restrições da fabricação de qualquer tipo de produto em nosso solo, ou
seja, em tese tudo deveria vir de Portugal, inclusive o vinho.
Outro fator que pode ter influenciado e não ter feito
prosperar o cultivo da videira seria a prioridade da época de então, que era a
descoberta de ouro, principalmente na região das Minas Gerais. Sabemos que São
Paulo até então era somente um vilarejo sem grande importância econômica para a
metrópole portuguesa, e se bem analisarmos a história da agricultura brasileira
a uva e o vinho nunca foram tidos como principal interesse por parte de nossos
colonizadores.
Após um período difícil, o povoado originado por Pedro Vaz
foi elevado à categoria de Freguesia no dia 15 de agosto de 1768, recebendo o
nome de São Roque do Carambeí. No dia 10 de julho de 1832, a Freguesia foi
elevada à categoria de vila, mas o progresso do local só começou em 1838, quando
começaram as lavouras de milho, algodão, arroz, mandioca e farinha de mandioca,
cana de açúcar e derivados, legumes e verduras. Em março de 1846, seis anos
após instalar-se na vila o destacamento da Guarda Nacional, Dom Pedro II e uma
pequena comitiva permaneceram um dia na cidade de São Roque. Com a passagem de
Dom Pedro II, Antonio Joaquim começou a se destacar no cenário político e,
graças ao morador ilustre, São Roque foi elevada à categoria de cidade no dia
22 de abril de 1864.
Após esse longo período de estagnação, o primeiro registro
oficial de plantação de uvas na região de São Roque se dá por volta de 1865,
quando o Doutor Eusébio Stevaux inicia uma pequena plantação na sua fazenda em
Pantojo. Pela mesma época, um colono italiano adquire uma pequena propriedade
no bairro de Setúbal, alguns anos mais tarde um português na terra do então
Sítio Samambaia forma um razoável vinhedo e inicia o processo de fabricação do
vinho.
Já em 1875 foi inaugurada a Estrada de Ferro Sorocabana, que
ligou a cidade de São Paulo a São Roque e Sorocaba. Após alguns anos, em 1884,
começou a grande chegada de imigrantes à cidade, fazendo com que as vinícolas
aparecessem novamente e ganhassem força nos anos seguintes. Em 1924, a cidade
já contava com 17.300 habitantes e foram produzidos 10 mil litros de vinho a
cada ano, tendo doze produtores de vinhos, sendo cinco deles italianos.
O que possibilitou o retorno da cultura da uva e fabricação
do vinho foi a importação de videiras oriundas dos Estados Unidos, pois estas
eram mais resistentes ao clima brasileiro. Dentre as principais videiras
trazidas estão inicialmente a “Izabel”, a “Seibel 2” (importada da França),
curiosamente trazida por imigrantes italianos que se instalaram na região e
posteriormente a “Niágara Branca”, oriunda da região do Alabama, EUA.
Portanto, a divisão do período da cultura vinícola de São
Roque, desde a fundação da cidade até a época atual em quatro fases distintas:
1ª fase: 1657 – 1880: importação de videiras portuguesas,
plantações domiciliares, sem qualquer cunho comercial, ou seja, somente para
consumo próprio.
2ª fase: 1880 – 1900: Retomada da viticultura são-roquense,
ainda que amadora, quase que familiar, continua voltada basicamente para o
consumo e pequeno varejo. Já apresenta uma tendência a profissionalização
graças às técnicas trazidas pelos imigrantes italianos e portugueses. Já se
utiliza da videira americana que melhor se adaptou ao clima tropical brasileiro
(talvez seja este um dos principais fatores de sucesso do cultivo da uva na
região de São Roque);
3ª fase 1900 – até aproximadamente final da década de 1950:
processo de industrialização e profissionalização da produção do vinho com
aplicações de técnicas mais modernas permitindo assim obter resultados e desempenho
melhores.
Podemos dividir esta fase primeiramente num período de início
do processo de profissionalização e logo após (a partir da década de 1920), o
período em que realmente a região investiu e desenvolveu as técnicas
vinicultoras, durando até aproximadamente a década de 1950, onde após a
massificação da produção entra num processo de decadência.
4ª fase década de 1960 – atual: esta fase engloba o processo
de decadência da viticultura são-roquense. Por motivos econômicos e climáticos
e até mesmo por falta de investimentos em pesquisas, que se reduziram
sensivelmente tanto a qualidade como a quantidade de vinho produzido, levando
ao fechamento de diversas adegas (isso principalmente a partir da década de
1980). São Roque permanecendo hoje somente com o título de “terra do vinho”,
sendo que os poucos fabricantes que restaram (aproximadamente treze adegas)
fabricam seu vinho não de uvas nativas de São Roque, mas sim oriundas de outras
partes do Estado ou mesmo de outros estados (exemplo: Rio Grande do Sul).
Há atualmente um movimento para tentar a reversão dessa
situação, porém continua bem modesto em relação a todo o histórico e números do
passado no ápice do cultivo da videira em São Roque.
E agora finalmente o vinho!
Na taça tem um vermelho rubi intenso, mas que realça um
brilho violáceo bem bonito, com lágrimas finas, lentas e em profusão,
desenhando as paredes do copo.
No nariz é que está o grande destaque deste vinho, sendo
muito perfumado e floral, explodindo em frutas vermelhas maduras como amora,
cereja e ameixa, com notas de especiarias doces, arriscaria, com toques
delicados de baunilha e madeira, graças aos 3 meses de passagem por barricas de
carvalho.
Na boca se revela um vinho de leve a médio corpo que, no
início mostrou um álcool um pouco sobressalente, mas que logo se equilibrou
revelando um vinho saboroso, frutado, como no aspecto olfativo, com taninos
presentes, mas ao mesmo tempo domados e elegantes com uma acidez equilibrada
que traz certo frescor ao vinho, além de um toque de madeira e de chocolate
meio amargo. Tem final curto.
Vinho não é só poesia engarrafada como dizia aquele poeta,
mas história engarrafada também. Degustamos história, degustamos cultura! É
muito gratificante e especial degustarmos vinhos com essa carga histórica
atrelada de forma tão veemente, tão latente. A história é viva e plena, não é
algo estático. Degustar o Dom Bernardino Touriga Nacional é como se
estabelecêssemos contato com um novo mundo, uma nova percepção, que enaltece as
nossas experiências sensoriais. Um vinho que apesar de ter as tradições lusitanas,
graças às raízes que criaram a vinícola, tem o terroir brasileiro, o fazer
brasileiro, a nossa cultura, a nossa assinatura. Um vinho que nada fica atrás
aos Tourigas Nacionais portugueses: intenso, encorpado, com uma personalidade
marcante, com as frutas vermelhas e negras tão características da cepa. Apesar
de todos os problemas que acometem as cidades do Brasil, o falso progresso e as
especulações imobiliárias que são um verdadeiro entrave aos vinhedos, há de se
enaltecer o espírito abnegado de alguns produtores que insistem bravamente em
trazer ao mundo seus rótulos para deleite de todos nós, simples e humildes
enófilos. Tem 12,5% de teor alcoólico.
Sobre a Vinícola Bella Aurora:
Vinícola fundada na década de 1920 por Bernardino Pereira
Leite imigrante português iniciou sua produção para consumo caseiro. A produção
em escala comercial teve início em 1932.
Com mais de 85 anos, Vinhos Bella Aurora mantém sua tradição
familiar na produção de saborosos vinhos, contando com uma excelente estrutura
de atendimento aos visitantes e uma equipe de representantes comercial em todo
estado de São Paulo.
A Vinícola proporciona um passeio turístico para quem busca
contato com a natureza. Neste passeio poderá degustar bons vinhos e sucos, além
de poder adquirir toda a linha de produtos típicos da Vinícola Bella Aurora.
Para melhor atender os clientes, a cantina dos Vinhos Bella Aurora foi montada
no interior de um autêntico tonel de madeira com capacidade para 120 mil
litros.
Mais informações acesse:
https://www.bellaaurora.com.br/
Referências:
“Assembleia Legislativa de São Paulo”: https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=301135
“Blog do Lullão”: http://www.lullao.com/p/historia-do-vinho-em-sao-roque.html?m=1
“Sites
Google”: https://sites.google.com/site/historiadovinhodesaoroque/home/historia-do-vinho-de-sao-roque