Quando a gente ultrapassa a condição de novidade e se enamora
por alguma coisa, quer mais. Ambições à parte, eu prefiro definir como desejo
de repetir a dose! E no universo do vinho não é diferente.
Quando degustamos uma casta pela primeira vez, quando
desbravamos, em generosas taças, novas regiões, novos terroirs e gostamos,
queremos sempre mais, não ficar apenas na estreia.
E lembro que o tema desse texto está girando em torno de uma
casta que descobri, quase que despretensiosamente, a pouco tempo, degustando um
vinho excepcional, especial. É um arrebatamento singular, mas que entrega
múltiplas sensações.
O primeiro contato confesso que, diante da minha magnânima
ignorância, pensei se tratar de uma casta tingida pela natureza, mas não,
descobri se tratar de uma “casta de laboratório”, como a Pinotage, por exemplo,
emblemática cepa da terra de Mandela.
Então o próximo passo, quando a conheci, foi ir mais a fundo,
buscar rótulos dessa casta e quem sabe adquirir uns exemplares, afinal a minha
caminhada em busca de castas pouco aclamadas precisam ser fomentadas.
Para a minha surpresa e alegria encontrei alguns rótulos
brasileiros! Sim! Brasileiros! O nome do vinho: Valdemiz Reserva Arinarnoa 2015! As impressões? A melhor possível! Que vinhaço!
E depois de algum tempo fui convidado por um bom amigo para
botar a conversa em dia e degustarmos bons vinhos, em nossa mais nova e
aconchegante confraria, quando ele me disse: “Teremos uma surpresa em nossas
degustações!”. Aquilo me animou e fiquei, claro, curioso.
Quando em sua casa cheguei e já se preparando para degustar o
primeiro rótulo vi, em sua adega, um Arinarnoa e exclamei: Uau, um Arinarnoa!
Não é todo dia que vemos um Arinarnoa por aí e ele logo disse: “Essa é a
surpresa!”. Não precisarei dizer que fui tomado por uma incontida animação!
Enfim então sem mais delongas vamos às apresentações! O vinho
que degustei e gostei veio da região de Santana do Livramento, no Rio Grande do
Sul, Brasil, e se chama Querências do Sul, um 100% Arinarnoa, da safra das
safras, 2020. E, para não perder o costume, vamos de história e falar um pouco
da importância de Santana do Livramento para o cenário vitivinícola brasileiro
e que faz parte da Campanha Gaúcha.
Campanha Gaúcha
Entre o encontro de rios como Rio Ibicuí e o Rio Quaraí,
forma-se o do Rio Uruguai, divisa entre o Brasil, Argentina e Uruguai. Parte da
Campanha Gaúcha também recebe corpo hídrico subterrâneo, o Aquífero Guarani
representa a segunda maior fonte de água doce subterrânea do planeta, dele
estando 157.600 km2 no Rio grande do Sul.
A Campanha Gaúcha se espalha também pelo Uruguai e pela
Argentina garante uma cumplicidade com os “hermanos” do outro lado do Rio
Uruguai. Os costumes se assemelham e os elementos locais emprestam rusticidade
original: o cabo de osso das facas, o couro nos tapetes, a tesoura de tosquia
que ganha novas utilidades.
No verão, entre os meses de dezembro a fevereiro, os dias
ficam com iluminação solar extensa, contendo praticamente 15 horas diárias de
insolação, o que colabora para a rápida maturação das uvas e também ajuda a
garantir uma elevada concentração de açúcar, fundamental para a produção de
vinhos finos de alta qualidade, complexos e intensos.
As condições climáticas são melhores que as da Serra Gaúcha e
tem-se avançado na produção de uvas europeias e vinhos de qualidade. Com o bom
clima local, o investimento em tecnologia e a vontade das empresas, a região
hoje já produz vinhos de grande qualidade que vêm surpreendendo a vinicultura
brasileira.
A mais de 150 anos, antes mesmo da abolição da escravatura, a
fronteira Oeste do Rio Grande do Sul já produzia vinhos de mesa que eram
exportados para os países do Prata (Uruguai, Argentina e Paraguai) e vendidos
no Brasil.
A primeira vinícola registrada do Brasil ficava na Campanha
Gaúcha. Com paredes de barro e telhado de palha, fundada por José Marimon, a
vinícola J. Marimon & Filhos iniciou o plantio de seus vinhedos em 1882, na
Quinta do Seival, onde hoje fica o município de Candiota.
E o mais interessante é que, desde o início da elaboração de
vinhos na região, os vinhos da Campanha Gaúcha comprovam sua qualidade
recebendo medalha de ouro, conforme um artigo de fevereiro de 1923, do extinto
jornal Correio do Sul de Bagé.
IP (Indicação de Procedência) da Campanha Gaúcha
Em 2020 a Campanha Gaúcha ganhou reconhecimento de Indicação
de Procedência (IP) para seus vinhos. Aprovada pelo Inpi na modalidade de I.P.,
a designação vem sendo utilizado pelas vinícolas da região a partir do ano de
2020 para os vinhos finos, tranquilos e espumantes, em garrafa.
A Indicação Geográfica (IG) foi o resultado de mais de 5 anos
de pesquisa, discussões e estudos de um grupo interdisciplinar coordenados pela
Embrapa Uva e Vinhos do Rio Grande do Sul.
Além disso, os vinhos devem ser elaborados a partir das 36
variedades de vitis viníferas permitidas pelo regulamento, plantadas em sistema
de condução em espaldeira e respeitando os limites máximos de produtividade por
hectare e os padrões de qualidade das frutas que seguirão para a vinificação.
Finalmente, os vinhos precisam ser avaliados e aprovados sensorialmente às
cegas por uma comissão de especialistas.
Esta é uma delimitação localizada no bioma Pampa do estado do
Rio Grande do Sul, região vitivinícola que começou a se fortalecer na década de
1980, ganhando novo impulso nos anos 2000, com o crescimento do número de
produtores de uva e de vinho, expandindo a atividade para diversos municípios
da região.
A área geográfica delimitada totaliza 44.365 km2. A IP
abrange, em todo ou em parte, 14 municípios da região: Aceguá, Alegrete, Bagé,
Barra do Quaraí, Candiota, Dom Pedrito, Hulha Negra, Itaqui, Lavras do Sul,
Maçambará, Quaraí, Rosário do Sul, Santana do Livramento e Uruguaiana.
A Campanha Gaúcha está situada entre os paralelos 29º e 31º
Sul e trata-se de uma zona ensolarada, com as temperaturas mais elevadas e o
menor volume de chuvas entre as regiões produtoras do Sul do Brasil.
Ao mesmo tempo, as parreiras – predominantemente plantadas em
sistema de espaldeira – foram estabelecidas em grandes extensões de planície
(altitude entre 100 e 360 m.) com encostas de baixa declividade, o que favorece
a mecanização das colheitas, reduz os custos e potencializa a escala produtiva.
Uma característica importante é o solo basáltico e arenoso, com boa drenagem,
que somada aos outros fatores propicia a ótima qualidade das uvas.
Esta foi uma conquista para a região, que pode refletir em
uma garantia da qualidade de seus produtos. Fica a torcida para que, após muito
tempo de consistência de qualidade e de uma real identificação da tipicidade, a
Campanha Gaúcha possa ter o reconhecimento de uma Denominação de Origem (DO).
Santana do Livramento
A Região de Santana do Livramento está localizada no paralelo
31. Uma área de clima temperado, com altas temperaturas no verão e geadas no
inverno. Além disso, o dia é marcado pela grande amplitude térmica. Essas
características privilegiam a produção vinícola. Isso pode ser também percebido
em outros países que estão nessa mesma latitude, como Argentina, Chile, África
do Sul e Austrália.
Nessa região gaúcha estão alguns pequenos produtores e
vinícolas maiores como Almadén, Salton, Nova Aliança e Cordilheira Santana.
Esses locais formam Ferradura dos Vinhedos. Eles podem ser visitados para
degustação de vinhos, sucos e uva.
Faz parte da Região da Campanha do Rio Grande do Sul,
destacando-se na pecuária (bovinos e ovinos) e na produção de arroz e soja.
Mais recentemente, vem ampliando a produção frutífera, com destaque para a
vitivinicultura.
Os primeiros ocupantes conhecidos da região do atual
município foram os índios charruas e minuanos. Em seguida, vieram jesuítas
espanhóis e ao longo do século XIX os imigrantes portugueses e italianos. Em
1810, a instabilidade política que levaria à independência das colônias espanholas
na Bacia Platina motivou a vinda de tropas portuguesas para a região, com a
finalidade de resguardar a fronteira luso-espanhola.
Essas tropas, comandadas por Diogo de Sousa, conde de Rio
Pardo, deram início à atual cidade de Sant'Ana do Livramento, com a construção
de uma capela dedicada à santa homônima. A povoação portuguesa permanente da
região iniciou-se com a doação de sesmarias feitas pelo Marquês de Alegrete, em
1814. Fundada a cidade em 30 de julho de 1823, foi elevada à categoria de município
em 1857, emancipando-se de Alegrete.
Arinarnoa
De acordo com algumas fontes pesquisadas a casta Arinarnoa
tem origem no País Basco, não sendo, portanto, francesa, não sendo também
espanhola. Como a casta Marselan, que vem fazendo sucesso no Brasil e a
Pinotage, a mais famosa cepa sul africana, a Arinarnoa também é um cruzamento
entre uvas e que está na lista das novas possíveis queridinhas de Bordeaux.
De acordo com o site “Plantgrape”, que cataloga videiras
produzidas na França (leia aqui) o crescimento do cultivo da Arinarnoa vem aumentando exponencialmente desde
1988 que tinha 5 hectares, passando para 155 hectares em 2000, 164 em 2008 e
178 hectares em 2018. Os números não mentem, a Arinarnoa vem ganhando espaço
entre os produtores franceses e vem também, consequentemente, tendo uma aceitação
do mercado daquele país.
O reforço de que a Arinarnoa vem de Bordeaux é de que a mesma
nasceu durante as alquimias de Pierre Marcel Durquéty, que também foi criador
da uva Egiodola, que se destaca no Brasil com um rótulo da Vinícola Pizzato, no
ano de 1956 no INRA (Institut National de la Recherche Agronomique), que fica
em Bordeaux, na França.
Durante muito tempo achava-se que o cruzamento que originou a
Arinarnoa era entre a Merlot e a Petit Verdot, porém testes de DNA rechaçaram
essa teoria e confirmaram que, na realidade, os pais verdadeiros são as uvas
Tannat e Cabernet Sauvignon, o que nos leva a concluir que ela é neta da Cabernet
Franc e da Sauvignon Blanc. Em 1980, a variedade foi oficialmente aprovada para
ser utilizada nas vinificações. A França é o principal produtor, no Sul do país
e norte de Cognac (não, não se produz apenas conhaques na região).
Em idioma basco, um reforço de que a casta pode ser oriunda
dessa região, a palavra “arin” significa “leveza”, algo agradável e versátil,
já a palavra “arnoa” significa “vinho”, ou seja, o seu autor, juntando as duas
palavras quis justamente indicar uma casta que originaria vinhos leves,
versáteis e agradáveis.
Inicialmente pensou-se ser cruzamento da Merlot com a Petit
Verdot, mas estudos de DNA recentes a veem como o cruzamento entre a Tannat e a
Cabernet Sauvignon. Há quem questione essa informação pelo fato da Arinarnoa
não ser uma casta leve, ser detentora de taninos firmes e presentes, mas de
Tannat e Cabernet Sauvignon.
Por brotar tardiamente, é uma ótima casta para evitar
estragos em anos que ocorrem geadas de primavera. Os cachos costumam ser
abertos, que é uma vantagem para evitar acúmulo de umidade e, consequentemente,
doenças fúngicas. As uvas têm cascas grossas que concentram compostos fenólicos
e de cor, então os vinhos costumeiramente são estruturados, possuem taninos
firmes, com cor profunda, e há possibilidades de encontrar nuances herbáceas, o
que também é de se esperar ao analisar os parentais.
Adaptou-se perfeitamente bem no Uruguai, Chile, Argentina, e, principalmente Brasil. Na região da Campanha Gaúcha há a projeção de que será uma das grandes uvas tintas. Gosta de invernos rigorosos e verões ensolarados, típico do clima continental da região.
E agora finalmente o vinho!
Na taça revela um envolvente vermelho rubi intenso, escuro,
mas brilhante e quase fechado, com halos violáceos, além de lágrimas fina,
intensas e lentas que desenham as bordas do copo.
No nariz mostrou-se intenso, aromático e extremamente
complexo com notas de frutas negras maduras, como ameixa, amora, conferindo
protagonismo, além de toques de couro, de ervas, aquele agradável toque
herbáceo, tabaco, especiarias e café.
Na boca é estruturado, de marcante personalidade, bom volume
de boca, untuoso, mostrando-se cheio, quente, mas, por outro lado,
apresentou-se redondo, equilibrado e até elegante. Traz taninos envolventes e
presentes, acidez equilibrada, com toques de rusticidade, lembrando tabaco,
terra molhada. Final persistente.
Para se ter uma noção da importância disso até mesmo em
Bordeaux a Arinarnoa tem sido pouco usada, então ver os produtores brasileiros
investindo nessa casta é no mínimo digno de orgulho. Mas pelo que pude ler a
respeito da casta ela se dá bem em climas de invernos rigorosos e verões
ensolarados, típicos das tradicionais regiões gaúchas da Campanha e Serra
Gaúcha. E graças ao bom gosto e percepção aguçada de meu bom amigo tive a
oportunidade e o prazer de degustar, mais uma vez, um Arinarnoa com carimbo de
qualidade, de tipicidade de um terroir brasileiro que, a cada dia, vem ganhando
destaque chegando ao mesmo patamar que a sua vizinha Serra Gaúcha. Que venham
mais e mais rótulos da excelente Arinarnoa! Tem 14% de teor alcoólico.
Sobre a Vinícola Jolimont:
Idealizado por um Francês estabelecido na região em 1948, a
Vitivinícola Jolimont é uma das pioneiras no Estado na produção de vinhos finos
e artesanais.
Os 27 hectares cultivados estão a 830 metros de altitude, em
solos pedregosos e profundos, com uma exposição geográfica privilegiada, do
nascente do sol, com incidência de raios solares nas primeiras horas da manhã,
até o pôr-do-sol, o que favorece a maturação homogênea dos frutos.
As baixas temperaturas durante o inverno são fundamentais às
videiras no período de dormência. As condições meteorológicas do Vale do Morro
Calçado exercem influência sobre a produção e a qualidade da uva, em todos os
períodos fenológicos da videira, desde o repouso vegetativo, que ocorre durante
o inverno, na brotação, floração, frutificação e crescimento das bagas, em meio
ao clima ameno da primavera, em sua maturação provinda do calor do verão, até a
queda das folhas ocorrida na estação do outono.
Essas condições climáticas, aliadas à topografia montanhosa e
ao excelente estado do solo, permitem a maturação perfeita dos frutos, formando
o Terroir ideal: um conjunto de fatores que contribui para a elaboração de um
vinho raro, de personalidade única. Mais que isso, desse Terroir do Vale do
Morro Calçado nasce o segredo da identidade de um vinho nobre, de sensação
inexplicável, revelado somente no paladar.
Com a qualidade superior das uvas colhidas e a quantidade
limitada de garrafas por safra, a Jolimont se coloca em um grupo seleto, que
elabora vinhos artesanais genuínos, puros e de qualidade internacional.
Mais informações acesse:
https://www.vinhosjolimont.com.br/
Referências:
“6 Viajantes”: https://6viajantes.com.br/provando-delicias-na-rota-ferradura-dos-vinhedos-em-santana-do-livramento
“Wikipedia”: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sant%27Ana_do_Livramento
“Plantgrape”:
https://plantgrape.plantnet-project.org/en/cepage/Arinarnoa
“Além do Vinho”: https://alemdovinho.wordpress.com/2015/09/17/arinarnoa-uma-grata-surpresa/
“Enocultura”: https://www.enocultura.com.br/cruzamento-entre-uvas-arinarnoa/
“Mondovinho”: http://mondovinho.blogspot.com/2018/02/um-varietal-de-arinarnoa.html
“Academia do Vinho”: https://www.academiadovinho.com.br/__mod_regiao.php?reg_num=CAMPANHA
“Vinhos da Campanha”: https://www.vinhosdacampanha.com.br/campanha-gaucha/
“Vinhos da Campanha”: https://www.vinhosdacampanha.com.br/ciclo-de-crescimento-da-uva/
“Tudo do Vinho”: https://tudodovinho.wordpress.com/2020/07/14/i-p-campanha-gaucha/
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