Tanques de concreto de
formato oval estão sendo usados na elaboração de vinhos
Antigamente, pensar em uma vinícola trazia automaticamente à
nossa mente a imagem de uma sala repleta de barricas e tonéis de madeira, nas
quais os vinhos eram feitos e envelhecidos. Hoje, muitos já sabem que, no
processo de elaboração da maioria dos vinhos, ele, em algum momento, vai passar
por um recipiente que seja de aço inoxidável, concreto e/ou madeira – e aquela
primeira imagem já não é tão “automática” assim.
Entretanto, o que nem todos sabem é que, nos últimos anos, um
número maior de enólogos tem dado muita importância à forma do recipiente e
vinificado alguns de seus rótulos em tanques de cimento em formato de ovos, por
exemplo.
Antes de qualquer coisa, há relatos do uso do concreto com
sucesso no processo de vinificação desde o século XIX. A “novidade”, contudo, é
o formato ovalado do recipiente – inspirado nas ânforas que etruscos, gregos,
persas e romanos já usavam para fermentar e envelhecer seus vinhos.
Mas, afinal, o que são esses ovos e de que forma influenciam
no vinho que bebemos?
Proporção áurea
O primeiro ovo de concreto foi fabricado na França, em 2001,
por Marc Nomblot – cuja expertise em construir tanques de concreto era vasta,
já que sua empresa atuava no ramo desde 1922 – a pedido do renomado enólogo
Michel Chapoutier. De acordo com Nomblot, não foram usados quaisquer aditivos
químicos, apenas “areia lavada do Loire, cascalhos e água mineral não clorada e
cimento”.
O projeto teve como base os princípios da “razão áurea”
estudada pelo matemático Euclides, representada pela letra grega phi (φ) – em
homenagem ao escultor grego Phidias – e ligada à mais agradável proporção entre
dois segmentos ou duas medidas. Esse fato é bastante interessante, já que a
proporção áurea também foi utilizada na construção das pirâmides do Egito e de
alguns prédios da Grécia Antiga, como o Parthenon. Essa “regra” influenciou
artistas de todas as gerações. Leonardo Da Vinci e outros renascentistas, além
de Le Courbusier e Salvador Dalí, por exemplo, que calcularam as proporções de
alguns de seus trabalhos levando isso em conta.
Movimento constante
O principal fator do formato oval, sem cantos ou bordas, é
permitir a constante movimentação do vinho dentro do recipiente, sem
necessidade do uso de bombas ou eletricidade, sem contato com oxigênio e sem
bâtonnage, remontagem ou outras interferências. A composição do líquido é mais
uniforme, especialmente no tocante à temperatura.
Gilles Lapaulus, da Sutton Grange Winery, foi o primeiro a
importar ovos de concreto para a Austrália, em 2005, e afirma que “a cinética
de fermentação parece mais regular, sem picos de alta e baixa velocidades, e,
além disso, é menos redutiva do que a fermentação em tanques de aço inoxidável”.
Acredita-se que a fermentação em ovos de cimento seja mais
regular
Ademais, dentro do ovo, as leveduras ficam em constante
movimento ascendente ao redor de um vórtice que se forma devido a uma corrente
interna, fazendo com que os taninos se tornem mais polidos e sejam suavizados
pelas porosas paredes de concreto do ovo, que permitem a micro-oxigenação do
vinho, sem a necessidade de usar a madeira e também sem interferência nos
aromas e sabores da bebida. Tudo isso realça o caráter das uvas, aumenta a
cremosidade de vinho e destaca as características de seu terroir.
Vale ressaltar que o cuidado com a qualidade das uvas e com
seu ponto de maturação é muito importante na vinificação em ovos de concreto –
particularmente nos tintos, quando pode acabar ocorrendo uma redução acentuada.
Em suma, quando bem trabalhado, o resultado é um vinho de aromas mais
pronunciados e identificáveis por apresentar uma fruta mais evidente, realçando
sua estrutura de boca e, de alguma forma, mais fiel ao lugar de onde vêm as
suas uvas.
Os ovos de concreto exigem alguns cuidados, todavia. Como não
têm qualquer tratamento interno, devem receber aplicações de soluções à base de
ácido tartárico. Segundo fabricantes e enólogos, o ideal é que a aplicação da
substância seja feita em duas etapas: a primeira dois dias antes e, a segunda,
na véspera de cada uso. Também deve ser inspecionado regularmente para checar
eventuais rachaduras, além de terem que ser lavados com água morna após cada
ciclo.
Pioneiros
Os ovos de concreto de Nomblot chegaram à América do Sul, em
2009, pelas mãos de Álvaro Espinoza, pioneiro enólogo chileno, simpático aos
preceitos biodinâmicos. Sua motivação veio de conversas com colegas biodinâmicos
franceses associados ao desejo de produzir vinhos não padronizados. A
experiência lhe foi bastante satisfatória, tanto que seu tinto ícone, Antiyal,
passa um ano em ovo de concreto, sem sequer se aproximar de qualquer madeira.
Devido aos custos, Espinoza começou com ovos de 6 hectolitros no intuito de
“envelhecer o vinho em suas próprias borras após a fermentação malolática” e,
nos ovos, por conta de seu formato, “as borras se mantêm em constante
movimento, como se fizesse bâtonnage contínua”.
Ainda no Chile, os Chardonnay, Sauvignon Blanc, Pinot Noir e
Syrah da linha EQ, da Matetic, e os vinhos da linha Signos de Origen, da
Emiliana, são produzidos em ovos de concreto. Na Morandé, o enólogo Ricardo
Baettig compõe tanto o Sauvignon Blanc Edición Limitada quanto o Chardonnay
Gran Reserva fermentando 80% dos vinhos em carvalho e 20% em ovos de 1.800
litros, deixando-os envelhecer nos ovos por dez meses. Outros exemplos de
vinícolas que contam com ovos de concreto em suas adegas são Errázuriz,
Undurraga, Veramonte, Cono Sur, Viu Manent e Montes.
Na Argentina, um entusiasta é Matías Michelini, que adotou o
método de vinificação em 2012. E não só. Como o investimento em ovos é alto
(eles não são baratos; um Nomblot, na França, varia entre € 3.000 – 6 hl – e €
6.000 – 16 hl –, fora as despesas de transporte), Michelini contratou o
fabricante de tanques Daniel Moreno para construir os recipientes. Resultado
disso é que outros produtores, como a Viña Morandé, por exemplo, usam ovos
fabricados na Argentina. Aliás, os recipientes têm feito a cabeça de outras
vinícolas como Bodega Aleanna, do famoso tinto El Enemigo, da Zorzal, com a
linha Eggo, da Catena, da Zuccardi, da Trapiche, da Rutini e de muitas outras
mais.
Galinha dos ovos de ouro?
O uso ovo de concreto tem sido analisado pelo Centro de
Pesquisas da Universidade de Geisenheim, na Alemanha. Um experimento conduzido
pelo Dr. Maximilian Freund comparou a vinificação de um Riesling Rheingau em um
ovo de concreto de 900 litros fabricado pela empresa Michlits e outro em um
tanque de 900 litros de aço inoxidável. Os resultados indicaram que, pelo menos
na safra 2008, o branco em questão não se adaptou exatamente bem ao concreto.
Isso porque o pH do vinho se mostrou muito baixo para o material e seus ácidos
corroeram o concreto, ainda que as propriedades sensoriais do vinho não tenham
sido afetadas.
Freund levanta duas considerações principais a respeito dos
ovos de concreto: o concreto em si e o formato oval. Para ele, vinhos que
apresentam pH mais elevado e acidez mais baixa – como os do sul da Europa, por
exemplo – são menos corrosivos ao material. Já com relação ao ovo, nesse único
experimento, não foram notadas diferenças consideráveis nas fermentações feitas
no ovo de concreto e no tanque de aço, seja em relação às leveduras, seja em
relação à biomassa. Um ponto diferencial foi a duração da fermentação – mais
longa, e com açúcar residual ligeiramente mais alto no ovo.
O estudo conclui que os ovos não seriam uma espécie de
artifício com a capacidade de fazer mágicas na elaboração do vinho. O trabalho
importante continua acontecendo no vinhedo e todo o processo de vinificação
deve ser considerado, não apenas um aspecto dele.
Ovo de madeira
Atenta ao interesse dos enólogos – especialmente os afeitos
aos métodos biodinâmicos – em usar ovos de concreto para produzir seus vinhos,
a reconhecida tonelaria francesa Taransaud desenvolveu um ovo de carvalho
francês, o qual chamou de “Ovum”. É o primeiro projeto de tanque de fermentação
em formato oval fabricado a partir de algo que não o concreto. O valor do Ovum
é alto, aproximadamente € 40.000. A questão é: vale o investimento? As
primeiras degustações de vinhos fermentados e envelhecidos no Ovum não foram
tão animadoras assim. Um ponto positivo foi o fato de que, no Ovum de 400
litros, as características e qualidades pretendidas foram atingidas em metade
do tempo de guarda estimado, provavelmente devido ao tamanho e ao formato do
recipiente. O Domaine de Chevalier, em Bordeaux, e a Maison Drapier, em
Champagne, são dois dos produtores que estão vinificando alguns de seus vinhos
no Ovum.
Fonte: Revista Adega, em: https://revistaadega.uol.com.br/artigo/vinificacao-em-ovos-de-concreto_10353.html
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